São Paulo, domingo, 23 de fevereiro de 1997 |
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"O Rei do Gado" redime país inexistente
FERNANDO DE BARROS E SILVA
Para quem gosta de ironia involuntária a coincidência entre a programação do Jardim Botânico e a agenda do Vaticano foi um prato cheio. Como? Uma união da tradição e da família... contra a propriedade? Digamos, por enquanto, que não é bem disso que se trata. No caso do papa, o cargo o obrigava a incluir algum item da chamada agenda social no seu discurso. Deve ter sido informado que a reforma agrária está em alta por aqui. Não teve dúvidas, mas fez questão de salientar que tudo deve ser feito "dentro da lei". Bingo. Com a novela foi mais interessante. Assim como fez com as crianças desaparecidas em "Explode Coração", a Globo usou a reforma agrária para embaralhar ficção e realidade em "O Rei do Gado". Essa dissolução de fronteiras começou com a inclusão do casal inspirado nos líderes do MST, Zé Rainha e Diolinda, e atingiu feição patética quando os senadores Eduardo Suplicy e Benedita da Silva, do PT, fizeram uma "ponta" no velório do "colega" Roberto Caxias, assassinado quando visitava um acampamento dos sem-terra. Se até dois senadores de esquerda tiraram sua lasca na novela, contribuindo para confundir política e ficção, é porque a estratégia da Globo em transformar "O Rei do Gado" num suposto alerta sobre os problemas do campo foi amplamente vitoriosa. Mas não foi uma vitória dos sem-terra, longe disso, e sim do gênero novela, que há tempos procura fórmulas para escapar de seu lento e inevitável esgotamento. Para quem ainda duvida de que não foi dessa vez que ficção e realidade entraram em simbiose redentora, basta lembrar o que foi o último capítulo do "O Rei do Gado", uma obra-prima na arte de iludir incautos bem-intencionados. O que fez a Globo? Simplesmente transformou um conflito de classes (com o perdão do jargão necessário) em oposição entre a pureza do campo e a perversão da cidade. No Brasil da Globo, o "rei do gado" casa-se com a bóia-fria, o "rei do café" termina com a governanta, a filha rica e mimada acaba com o violeiro pé-rapado. A cena do casamento de Bruno Mezenga diz tudo. A festa é "humilde", faz alus¦o ao folclore. Entre bandeiras de São João e música a cargo de uma bandinha típica, todos dançam, brincam de quadrilha, pisam descalços o chão de terra. Os pés de patrões e colonos se confundem, entram em comunhão, como se simbolizassem que o Brasil, finalmente redimido, estivesse todo ali, naquela cena anterior ao pecado original. O texto no final da novela reforça a mitologia. Em voz grave, o locutor ensina: "Deus quando criou o mundo não deu terra para ninguém, porque todos que aqui nascem são seus filhos. Mas só merece a terra aquele que a faz produzir para si e para seus semelhantes. O melhor adubo da terra é o suor daqueles que trabalham nela". A Globo reinventou assim o mito rousseauísta do "bom selvagem". Os inimigos do Brasil seriam a modernidade, a impessoalidade da vida urbana, a frieza das instituições, a generalidade da lei. Como qualquer senador pode ver, trata-se de ficção em estado bruto. A realidade é mais chata. Nela, o "rei do gado", se houver um, deve estar comemorando o casamento de sua filha com um jantar privê no Leopolldo depois de ter fechado o Olympia para receber seus convidados num show de Chitãozinho e Xororó. Parece que nenhum sem-terra foi convidado. Próximo Texto: CARTAS Índice |
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