São Paulo, quinta-feira, 27 de fevereiro de 1997
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Pescando na galeria

MOACYR SCLIAR

O velho pescador estava em casa examinando suas carretilhas quando o filho chegou, com um embrulho debaixo do braço. Nem sequer levantou a cabeça; não tinha muito apreço pelo rapaz, que, além de não trabalhar, volta e meia envolvia-se com roubos. O jovem, porém, estava radiante.
- Você lembra, papai, quando tentou me ensinar a pescar? Você lembra da frase que me disse - enquanto você não pegar uma truta gigante você não será nada na vida?
- Lembro - disse o velho, num tom seco.
- Você lembra de ter me dito que eu seria sempre um inútil, que nem para pescar eu servia?
- Lembro.
- Pois eu estou aqui, papai - o tom de orgulho era agora indisfarçável - para lhe dizer que o senhor estava enganado. É verdade, eu nunca peguei a truta gigante. Mas nem por isso deixei de me exercitar com o caniço. E fisguei algo muito melhor do que aquela truta. Melhor do que todas as trutas que o senhor pescou na vida. Olhe só.
Desfez o embrulho, mostrando um quadro.
- O que é isso? - perguntou o pai, entre intrigado e irritado.
- Não está vendo? É um quadro.
- Que é um quadro eu já notei. E daí? Qual a importância de um quadro?
O filho sorriu, superior.
- É pena que o senhor seja tão ignorante, papai. Sabe quem pintou esse quadro? Gustav Klimt. E o senhor sabe quem é Gustav Klimt? É um dos artistas mais valorizados da atualidade. Esse quadro vale milhões de dólares, papai. Tudo o que o senhor ganhou na vida não chega sequer para pagar a moldura desse retrato. Estou rico, papai. Rico.
- Onde é que você arranjou essa coisa? - O velho, suspeitoso.
Eu poderia lhe dizer - o filho, irônico - que descobri num antiquário. Ou que comprei num leilão. Mas não é verdade, papai. A verdade é que roubei esse quadro de uma galeria. E sabe como roubei? Com uma vara de pescar. Até que um dia fisguei alguma coisa de importância. Até que um dia mostrei para que sirvo.
O velho olhou o quadro, depois olhou o filho, depois o quadro de novo, depois o filho de novo.
Pegue essa coisa e desapareça daqui - disse, por fim. O rapaz, sem uma palavra, obedeceu. E quando ia saindo, ainda ouviu o pai dizer, como se falasse para si mesmo:
- Prefiro a truta.

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