São Paulo, quinta-feira, 27 de fevereiro de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Dar(de)cy

PEDRO SIMON

Não consigo imaginar o que o senador Darcy Ribeiro está fazendo, agora, no céu. Lá não há sem-terra nem sem-casa nem sem-comida. De lá, ele contempla os milhões de sem-nada, como que uma verdadeira obra inacabada nesta "terra que sonhou ver dividida".
Por isso, não se assustem se o encontrarem por aí, com sua voz rouca. É que, por essa obra inacabada, ele é capaz de fugir do céu.
No Senado, nos últimos tempos, sua cadeira era de rodas. Sua imaginação, de asas. Tinha o dom da ubiquidade. Ele era todos, em todos os lugares. Era o índio, o negro, o mulato, o menino de rua, o povo brasileiro, o Brasil.
Era um símbolo da mineiridade, nascido entre pequis, carnes-de-sol e serestas, na bela Montes Claros. Ao mesmo tempo, um cosmopolita. Sabia, como ninguém, unir educação e folia, como num sambódromo. Seu tempo era integral, como num Ciep. Viveu momentos de tensão e de ternura, como na Universidade de Brasília das invasões militares e do "beijódromo".
Ele era o pantanal, etnólogo; o Rio de Janeiro, vice-governador e senador; o Brasil, ministro; o mundo, exilado. Quem sabe lhe restasse, apenas, a imensidão dos céus. Pelo menos, por tudo o que conhecemos e que com ele aprendemos, e pelos princípios divinos, lá ele não pertence a qualquer bloco de oposição. Nem ele nem o Teotônio nem o Ulysses nem o Tancredo.
Uma experiência nova para aquele a quem, na terra, a realidade brasileira impunha a contestação. Seu último artigo demonstrava a sua preocupação com os meninos de rua.
Ainda sobre o tema, gravou mensagem ao presidente da República: "Você já viu bezerro sem ração? Ou um cabrito? Ou uma galinha sem dono para lhe dar comida? Você não viu! E sabe por quê? Porque não existe! Agora, menino de rua, tem um monte por aí. Não existe galinha de rua, existe? Pois é, nem bezerro nem cavalo. Mas criança, tem. Isso não pode!"
Preocupava-lhe, sobremaneira, a privatização anunciada da Companhia Vale do Rio Doce, a descaracterização da Petrobrás, a desnacionalização do nosso subsolo, a invasão sorrateira da Amazônia.
Pela Academia Brasileira de Letras, ele se tornou imortal, porque sua obra será reconhecida até o final dos tempos. No Senado Federal, também. Lá, o seu espaço físico será ocupado por uma nova personalidade do pensamento brasileiro. Daqui ele se foi, mas quis o destino que o seu suplente tivesse, como sobrenome, Nascimento.
O Darcy será homenageado por todos os brasileiros. Com cânticos, orações, folias, catiras, carnavais, serestas, afoxés e aruanãs. No palacete suntuoso e na palhoça mais humilde.
Ele era um brasileiro que, verdadeiramente, amava o seu país. Garimpava riquezas em nossas diferenças. Mas lutava contra todas as nossas disparidades. Vivia intensamente a vida, e o seu exemplo ultrapassa a morte. Somos, todos nós, suplentes. Somos, todos, nascimento.
Recomendei ao Senado Federal que o próximo número de "Os Grandes Vultos do Senado" seja dedicado ao Darcy Ribeiro. Não sei se será necessária uma grande tiragem. Afinal, a sua vida como antropólogo, escritor, romancista, educador, pesquisador e humanista já é, por si só, uma obra conhecida e reverenciada. Acho que o Darcy não se quietaria, nem mesmo em compêndios, se eles dormitassem em prateleiras frias. Quem sabe um número suficiente para as mesas de trabalho de todos os tomadores de decisão sobre os destinos deste país. Ou de cabeceira, à luz dos seus exemplos. Assim, o Darcy descansaria, em paz. E, enfim, a sua obra se tornaria acabada.

Texto Anterior: CONGESTIONAMENTO; BONS AMIGOS
Próximo Texto: Unidos da reforma agrária
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.