São Paulo, segunda-feira, 3 de março de 1997
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Nabokov, simbiose e rock and roll

ÁLVARO PEREIRA JÚNIOR
ESPECIAL PARA A FOLHA

Vera (a mulher) e Vladimir Nabokov (o marido) não eram duas pessoas, mas uma só. Vera escrevia as cartas de Vladimir, negociava com editoras e patrões, falava ao telefone no lugar dele, porque Vladimir se afligia ao ouvir vozes distantes em ligações interurbanas. Vera passou a vida sendo Vladimir.
O casal transformou-se em instituição, em nebuloso monumento, conhecido pelas iniciais VN, sigla que poderia se referir a qualquer um dos dois.
Ela cuidava da vida prática. Ele, que não conseguia sequer adoçar o próprio café sem derrubar todo o açúcar no sapato, pensava.
Para a rapaziada mais jovem, a explicação: Vladimir Nabokov é autor do clássico romance "Lolita", sobre o envolvimento de um homem maduro com uma mocinha; o livro está virando filme pela segunda vez.
Um artigo de Stacy Schiff na revista "New Yorker" de 10 de fevereiro relata em detalhes a relação amoroso-simbiótica de Vera e Vladimir.
Entre 1948 e 1959, Vladimir ensinou na prestigiosa Universidade Cornell, interior do Estado de Nova York. Vera comparecia a todas as aulas, sentava-se na primeira fila e nunca dizia uma palavra. O marido só a chamava de "assistente".
Numa manhã nublada, Vladimir dava aula praticamente no escuro. Notando o desconforto, Vera levantou-se para acender as luzes.
Segundo o relato de Schiff para a "New Yorker", Vladimir, embevecido pelo gesto, abriu um sorriso largo e apontou para ela.
"Senhoras e senhores, minha assistente."
*
Como Vera e Vladimir, o rock and roll e a dance music, representada em variações como trance, drum and bass e techno, caminham para um casamento/simbiose.
Na situação atual, o rock cuida da vida prática enquanto a dance music pensa (já foi ao contrário, não é mais).
Trent Reznor, o torturado sacerdote industrial do Nine Inch Nails, declarou à revista americana "Ray Gun" que está "completamente de saco cheio de rock" e só escuta jungle e drum and bass (é a mesma coisa, mas foi assim que ele falou).
Bem, enquanto isso, o Bush lançou mais um álbum. Assim fica difícil.
*
Vejo o trailer de um filme brasileiro, "O Livro do Amor", ou qualquer coisa assim.
Submetido a três minutos do mais raso cabecismo zona-sul, lembrei-me de duas pessoas.
1) Paulo Francis: "Cinema brasileiro não presta. Ponto."
2) Pauline Kael (crítica americana): "Talvez exista filme pior do que 'Ironweed', mas difícil". Ela escreveu isso sobre "Ironweed" (obra de Hector Babenco), mas se tivesse visto "O Livro do Amor" teria dito o mesmo.

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