São Paulo, segunda-feira, 3 de março de 1997
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Companhia cinematográfica brasileira, criada em 1949, ganha retrospectiva, que estréia hoje na Sala Cinemateca, em São Paulo

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DE CINEMA

"Qual é o interesse numa revisão da Vera Cruz?", pergunta Paulo Antonio Paranaguá no catálogo da retrospectiva da companhia de São Bernardo do Campo, realizada em 1996, no Festival de Biarritz, França, e que hoje chega a São Paulo (na Sala Cinemateca).
A pergunta é inevitável. A resposta de Paranaguá introduz sobretudo o espectador estrangeiro à saga do mais enigmático cadáver insepulto do cinema nacional.
Serão mostrados 16 filmes produzidos entre 1949, data de abertura da Vera Cruz, até 1954, quando a companhia encerrou suas atividades e passou a ser propriedade do Banespa.
A Vera Cruz voltou a funcionar no final dos anos 60, dirigida pelos irmãos William e Walter Khouri. Fechou pela última vez em 1971.
Quando tudo parecia terminado, o governo do Estado passou a planejar, no ano passado, a reabertura dos estúdios.
O significado da Vera Cruz ainda não é claro. Em seu livro de ensaios "Alguns", Julio Bressane chama a atenção para o salto tecnológico representado por ela: equipamentos de primeira foram comprados, convocaram-se técnicos estrangeiros para operá-los.
Cavalcanti, brasileiro radicado na Europa desde os anos 20 e o cineasta brasileiro de maior prestígio internacional, voltou ao Brasil para dirigir a produção.
Era como partir do zero.
Cavalcanti dizia que sua ambição era, a médio prazo, criar um estilo brasileiro. Por isso chamou profissionais de várias partes do mundo. Não queria que um estilo nacional se impusesse sobre outro, e sim que os técnicos estrangeiros formassem profissionais brasileiros.
Criticou-se Cavalcanti por desprezar profissionais brasileiros, como o diretor Humberto Mauro. Na verdade, Cavalcanti e Mauro não se bicavam.
No mais, Cavalcanti desentendeu-se com a companhia antes da realização de "Ângela" (1951), que ele queria confiar a um brasileiro (Agostinho Martins Pereira). Por fim, segundo ele o roteiro foi mudado, o que acabou de entornar o caldo.
Órfã de seu principal mentor, a Vera Cruz navegou até 1954, entre melodramas sofríveis, como "Appassionata" (52), as comédias de Mazzaropi e algumas bem-sucedidas, como "Sinhá-Moça" (53), ou inovadoras, caso de "O Cangaceiro" (53).
No geral, pode-se concordar com Paranaguá, quando fala que "a Vera Cruz padeceu o estigma do mimetismo". Sua característica mais constante era dar "cor local" a códigos narrativos "universais"; falar "do Planalto Paulista para o mundo". Hoje, parece claro que esse aspecto do projeto era furado.
Na verdade, o modelo que dará uma personalidade ao cinema brasileiro surge como oposição à Vera Cruz, pelas mãos de Nelson Pereira dos Santos (ele havia trabalhado na companhia), que se apóia na estética neo-realista desde "Rio 40 Graus" (55): suprime a grande produção, troca os estúdios por locações reais, enfoca personagens populares.
Num aspecto parece haver unanimidade, em relação à Vera Cruz: a pedra no sapato da companhia não foram seus filmes, mas o fato de não controlar a distribuição de suas obras, num mercado dominado pela produção estrangeira.
A Vera Cruz desapareceu em 1954, deixando como herança seu fracasso comercial. Com ele sedimenta-se a crença na necessidade de criar mecanismos capazes de proteger o filme brasileiro contra o predomínio estrangeiro em seu próprio mercado. De lá virão as medidas de garantia de exibição, por exemplo, criadas a partir dos anos 60, que vigoraram até 1990.
Dela virá também a preocupação em criar produtos "com qualidade", capazes de enfrentar o mercado internacional em condição de razoável igualdade, que caracteriza a era da Embrafilme (entre início dos anos 70 e 1990).
Certas ou erradas, as políticas de cinema que vigoraram no Brasil até 1990, e até as mais recentes, têm como referência a aventura da companhia de Franco Zampari.
Talvez seja o caso de dizer que, como a Vera Cruz em 1949, também o cinema feito depois de 1990 no Brasil reparte do zero.
Talvez seja esse, também, o destino da cinematografia no Brasil: sonhar estabelecer-se de uma vez por todas e, depois de algum tempo, ver esse sonho reduzir-se a um ciclo. É assim há cem anos. Não deixa de ser uma forma de criar sua história.

Onde: Cinemateca (r. Fradique Coutinho, 361, Pinheiros, tel. (011) 5084-2177)
Quanto: R$ 6

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