São Paulo, quarta-feira, 5 de março de 1997
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Afinal, para que serve um clone?

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Não se fala de outra coisa a não ser de clones. A primeira reação depois do surgimento da ovelha "Dolly" foi humorística. Quem você gostaria de ver clonado, quem você não gostaria etc. As piadas em torno do assunto foram meio sem graça. É porque não escondiam o pânico. A idéia de clonar um ser humano é muito aterrorizante.
Houve também a reação do Vaticano. O papa João Paulo 2º é contra a clonagem de seres humanos. Também é contra o bebê de proveta, a camisinha, a pílula. Mas desta vez minha reação inicial foi ser a favor do papa. Fiquei pensando se agora a ciência não estava indo longe demais.
Construí o seguinte raciocínio: na sociedade atual, não se dá espaço ao "transcendente". Entendo por "transcendente" aquilo que não precisa de explicação racional; aquilo que diz respeito ao espiritual, ao religioso, ao absoluto.
A moderna sociedade de consumo é "imanente" por natureza. No seguinte sentido: não há valores espirituais em jogo, valores absolutos, verdades espirituais a alcançar. Quais são os nossos valores? Em primeiro lugar, o prolongamento da nossa própria vida. Não queremos morrer. Em segundo lugar, o máximo de conforto material. Não queremos viver sem conforto. Em terceiro lugar, o bem-estar de nossos filhos. Queremos segurança, conforto, longevidade.
Nenhum desses valores transcende nossa existência. Nenhum deles aponta para uma felicidade "além" da vida, nenhum é tão alto que supere o nosso instinto de conservação. Queremos ser como somos, se possível eternamente; no século 17, o filósofo Spinoza resumia a idéia em latim, "sese conservare".
Cada bem de consumo, cada mercadoria é "imanente" à medida que serve, apenas, para o fim a que se destina. Um telefone existe para funcionar, para atender aos fins a que se propõe. Um computador é bom quando funciona bem, é melhor se funciona melhor ainda.
Não há fins supremos, valores transcendentais em jogo no mundo dos objetos. Tudo tem sua utilidade, e pronto.
A clonagem de animais e seres humanos introduz então um problema ético. Pois se trata de "fabricar" gente. Em tese, pessoas, seres humanos, se transformariam em artefatos industriais. Isso é escandaloso. Melhor proibir.
Mas proibir em nome de quê? Qual o argumento? Como a clonagem é sintoma de nossa "imanência" moderna, toda uma série de raciocínios invoca, voluntariamente ou não, a idéia de "transcendência", de valor espiritual, de Ordem Universal. É o que diz o papa. É o que diz a vaga religiosidade dos ecologistas, para os quais não se brinca com a Natureza (esse outro nome de Deus) impunemente.
Não gosto de raciocínios místicos e religiosos. São sempre argumentos de autoridade. "Você não deve fazer isso porque Deus não quer." Será possível condenar a clonagem humana sem apelar para o Transcendente, para a Ordem da Natureza, para a Superstição Ecológica? É possível uma moral razoável de um ponto de vista não-religioso?
A questão foi tratada pelo filósofo Kant, no século 18, e é difícil dizer se foi resolvida por ele. O "certo" e o "errado" na nossa ação cotidiana foram tratados por Kant como uma questão de coerência lógica (se você mentir, ainda que seja uma mentirinha simpática, estará negando a validade de tudo o que disser adiante) e ao mesmo tempo como uma enormidade cósmica: há uma lei moral em mim, um imperativo rigoroso, que me faz obedecer à lei em detrimento do meu prazer; há alguma coisa que, a despeito de todo o meu interesse material, se eleva até as estrelas que cintilam no céu.
Isso tem um ar de apelo à transcendência, apesar de todo o esforço racional de Kant em fundamentar a lei moral na lógica e na coerência da argumentação. O "bem-estar" que resulta de agir conforme a lei não deixa de ser puramente emocional, arbitrário, cultural. Não tem nada a ver com a ordem do cosmos, com a suposta benignidade da natureza, com a harmonia celeste descoberta por Newton.
Mas, se recusamos qualquer argumento "transcendente", seja a Lei Divina, seja a harmoniosa moralidade kantiana, segundo a qual nenhum homem deve se tornar "objeto", "artefato", "máquina" para nenhum outro homem, como ser contra, ainda assim, a clonagem de seres humanos?
Acho que não é preciso nenhum apelo à "transcendência", à religião, à Ordem da Natureza, para ser contra a idéia.
É que, na minha opinião, ninguém fez a sério a única pergunta "imanente", utilitária, que cabe no momento: afinal, para que serve um clone?
Não sei se serve para alguma coisa. Um verdadeiro delírio ideológico está em curso: o de que clonando Madre Teresa de Calcutá ou Betinho será possível obter novos Betinhos e novas Madres Teresas. Obviamente, não. Betinho e Madre Teresa não são pura consequência da carga genética que receberam ao nascer. Passaram por mil experiências concretas, leram tais ou quais livros, viram tais ou quais fatos acontecerem. Um clone de Madre Teresa, para quem não sabe, passará necessariamente pelo estágio de embrião, de bebê, de criança, de adolescente... com outros pais, outro meio, e pode terminar dependente de drogas, indiferente à miséria dos povos, vítima de compulsão criminosa...
Pois é óbvio que a herança genética não determina tudo. Um clone de Ronald Reagan não terá tido os pais que ele teve, não terá sido o ator de Hollywood que ele foi, o líder americano que chegou a ser.
O clone de Ronald Reagan teria de passar pelo estágio de embrião, de bebê, de criança, de adolescente... e viraria outra coisa, diferentíssima, do Ronald Reagan que viveu sua adolescência nos anos 30...
Para que serve um clone, então? Podemos pensar naquela imagem de ficção científica: um exército de clones, com disciplina prussiana, servindo de carne de canhão numa batalha interestelar. Mas mesmo assim não funcionaria. Por vários motivos.
Primeiro: custa mais caro fabricar clones que recrutar órfãos e menores abandonados. O mais horrendo ditador não teria dificuldades em separar crianças recém-nascidas do colo da mãe e treiná-las para formar um exército impessoal e sanguinário. Exércitos impessoais e sanguinários já foram feitos, aliás, sem que fosse necessária uma educação programada desde a mais tenra infância.
Segundo: cada vez menos a guerra necessita de soldados que sirvam como carne de canhão. Soldados, iguaizinhos uns aos outros, ou diferentes entre si, não precisam vitimar-se quando o que prevalece é a lógica do bombardeio científico, tal como ocorreu no Iraque.
Mais argumentos contra a clonagem. Seria um exército de clones mais eficiente que um exército normal? Duvido. Um exército normal precisa de pessoas especializadas em coisas diversas: um sujeito ótimo de pontaria, outro sujeito ótimo no combate físico, outro excelente em corrida, um outro gênio da prudência, outro ainda gênio da ousadia. A diversidade biológica, o acaso da natureza valem mais que qualquer programação.
Para que, então, serve um clone humano? Pode-se dizer: como banco de órgãos para transplante. Você está com sessenta anos, seu coração anda ruinzinho, seria ótimo você dispor de um clone seu que lhe desse o coração numa cirurgia. Mesmo assim, isso é absurdo. Imagine o custo de manter um clone seu em vida vegetativa, num hospital, desde o momento em que você nasceu até o momento em que você precisar dele, só para que ele no fim lhe faça a doação de um órgão. Mais prático e mais barato será obter o órgão de um doador de 20 anos, em vez do órgão de seu suposto clone que terá os mesmos 60 anos que você.
A idéia surge como sistema de imortalidade -mas o clone de Ronald Reagan, 80 anos depois do nascimento de Ronald Reagan, seria outra pessoa)- e como sistema de manipulação -mas um exército de clones seria provavelmente o mais rebelde, o mais ingovernável do mundo, à medida que cada soldado aposta em criar diferenças próprias; surge como motivo de piadas e cafajestismos, à falta de coisa melhor.
Pois quando queremos um clone de Marilyn Monroe ou da Carla do Tchan, estamos pensando só no corpo delas. O corpo como objeto de consumo, eis uma conclusão óbvia. Mas será que a Carla do Tchan, clonada, seria tão desejável quanto a real? Duvido.
Pois, além da forma física, há a graça, a desenvoltura da mulher desejada. É óbvio, para alegria da humanidade, que mesmo o maior ogro machista não se encanta simplesmente com a antropometria das formas de uma mulher. Por primitivo que seja, liga-se na graça, no encanto, no ritmo de um corpo. Mais uma razão para dizer que clones, reproduções perfeitas de matéria, de nada servem quando não há vida, cultura, subjetividade.

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