São Paulo, sexta-feira, 14 de março de 1997
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O fim do mundo

HILARIO FRANCO JR.

a proximidade do ano 2000 parece deixar poucas pessoas indiferentes. Os capitalistas vêem nele uma boa oportunidade para negócios. Nos EUA, desde 1979, uma Millenium Society prepara comemorações da data. Na Inglaterra, um comitê especial recebe 20% da renda da loteria nacional para elaborar projetos para o novo milênio. Na França, já foram depositadas 1.287 marcas industriais referentes ao bimilenário. Na Itália, são aguardados naquele ano 40 milhões de peregrinos em Roma.
Os catastrofistas e esotéricos, por sua vez, dedicam-se a observar sinais anunciadores do fim do mundo e a se preparar para ele. Algumas seitas buscam mesmo se antecipar, por meio do suicídio coletivo. Os estudiosos do comportamento humano, de seu lado, encontram naquela data um objeto de estudo atraente: uma pesquisa realizada em 1995, mostrou que 59% dos norte-americanos acreditam que o ano 2000 será o fim do mundo.
Os historiadores também participam do debate, por conhecerem o antecedente do ano 1000, quando a Europa teria vivido uma atmosfera de medo coletivo diante da eminência do fim dos tempos. Assim, uma das mais importantes revistas especializadas em história medieval, a norte-americana "Speculum", desde fins do ano passado, seleciona artigos para seu número especial de 1999 sobre o tema. O último livro do recém-falecido Georges Duby foi igualmente dedicado ao assunto ("An 1000, An 2000 - Sur les Traces de nos Peurs", Paris, Textuel, 1995).
Dois anos antes, o inglês Norman Cohn preferiu voltar-se para as raízes históricas da mentalidade milenarista. Depois de examinar mitos orientais que viam o universo como palco de uma luta entre a ordem e a desordem -o Cosmos e o Caos-, ele chama a atenção para a profunda transformação provocada, entre 1500 e 1220 a.C., pelas concepções de Zaratustra. De fato, o ensinamento do profeta persa atribuía um fim àquele conflito, com a subsequente instalação de uma era perfeita e definitiva.
Esse dualismo zoroástrico iria influenciar certos grupos judaicos (que elaboram então os textos conhecidos por "Apocalipse") e particularmente a seita de Jesus Cristo. Por intermédio do cristianismo, aquela influência revelou-se de longo alcance, pois "incontáveis movimentos milenaristas, inclusive os que hoje prosperam com tanto vigor nos Estados Unidos, e até mesmo a atração exercida pela ideologia marxista-leninista -tudo isto pertence a essa história".
De forma geral, Cohn busca articular as idéias apocalípticas com o contexto histórico do qual eram produtos e produtoras. Contudo isso é feito de forma desigual, com mais sucesso em relação às permanências do que às rupturas na trajetória do pensamento escatológico. Acompanhando a historiografia especializada, ele mostra com clareza e segurança que, se a mitologia de alguns povos concebia um mundo na essência imutável, era devido a uma geografia e uma história estáveis.
Mas, ao pretender explicar por que Zaratustra ou Jesus alteraram a visão anterior que concebia um cosmos eterno, apesar de ameaçado pelas forças do caos, o resultado é menos consistente. Por exemplo, ele atribui a mudança realizada pelo zoroastrismo ao fato de a sociedade iraniana da época ter-se militarizado para fazer frente a pressões externas, o que teria revelado ao profeta uma sociedade violenta e desigual, contra a qual ele imagina o futuro fim desse mundo e o surgimento de outro, eticamente superior.
Em relação à gênese das idéias milenaristas cristãs, a explicação é que, na relativamente rica Galiléia, havia muitos desprivilegiados e excluídos, contraste que chocava Jesus, e levou à sua opção por estes indivíduos, aos quais prometia uma vida perfeita colocada fora da história. Igualmente problemática é a afirmação de que o dualismo zoroástrico está na origem da escatologia hebraica e em especial cristã, graças ao contato físico existente durante gerações entre membros das duas sociedades.
A tese de Cohn quanto à aceitação das idéias zoroástricas por parte dos judeus é bastante plausível, porém seria preciso especular com maior profundidade como e por que se deu tal assimilação. O simples contato entre dois povos pouco explica, se não considerarmos as variadas modalidades do processo aculturativo. Ou seja, às vezes o livro revela-se uma história convencional do pensamento, atribuindo às idéias vida quase autônoma, pouco vinculada aos fatores sociais, econômicos, políticos, culturais, psicológicos.
Ainda assim, "Cosmos, Caos e o Mundo que Virá" é obra instigante, séria, bem documentada, de leitura agradável. Obra importante para quem quiser refletir sobre o revigoramento dos sentimentos escatológicos neste fim de milênio.

Hilario Franco Junior é professor do departamento de história da USP e autor de
"As Utopias Medievais" (Brasiliense) e "A Eva Barbada - Ensaios de Mitologia Medieval" (Edusp).

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