São Paulo, sexta-feira, 14 de março de 1997
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Na bacia das almas, a alma não vale nada

CARLOS HEITOR CONY
DO CONSELHO EDITORIAL

"Passou a infância catando lixo nas ruas de New Brunswick, no Canadá. Aos 22 anos comprou um antigo teatro de variedades em Haverhill, Massachusetts. Aos 30 anos era o maior salário dos Estados Unidos." Esta é uma rápida sinopse de um dos magnatas de Hollywood, o semi-analfabeto, truculento, lendário e genial Louis B. Mayer, o homem da Metro e daquele leão que ainda hoje ruge num logotipo que rendeu bastante dinheiro e Gene Kelly cantando na chuva.
Pulando de Massachusetts para o Lins de Vasconcelos, comparo o sucesso dele com o meu fracasso. Não catei lixo pelas ruas do Cabuçu. Aos 22 anos, catava notícias e apurava como podia os fatos miúdos do dia-a-dia naquela que foi a profissão de meu pai e seria a minha. Hoje, passados tantos anos, continuo sem compreender o intrigante hiato existente na biografia da maioria dos milionários, Louis B. Mayer entre eles. De catador de lixo na infância, mal saído da adolescência já tinha dinheiro para comprar um teatro.
Talvez o lixo do Canadá seja tão rico e fecundo que dá para esses lances. Aqui no Brasil é diferente, o nosso lixo deve ser ruim mesmo, seus catadores atravessam a vida e morrem na pior. Volta e meia medito sobre as razões que me impediram de ganhar os milhões de dólares que nunca tive. Uma dessas razões, seguramente, é que não catei lixo na minha infância.
Citei o caso de Louis B. Mayer, poderia citar o de Aristóteles Onassis. Esse não catou lixo. Catou pontas de cigarro em Buenos Aires e no final da vida tinha dinheiro para pagar cinco noites por ano com a viúva da América, também conhecida como Jacqueline Kennedy. Outro magnata, John D. Rockefeller, não nasceu rico nem dono de poços de petróleo. Em menino vendia perus -guimbas e perus que ficaram faltando em minha obscura biografia e na desoladora modéstia de minha conta bancária.
Menino da classe média carioca, tive bolas de futebol "Sparta" nº 5, patins, bicicleta Philips e um trenzinho de corda que me dava um baita status entre os guris da vizinhança. Eram os sinais exteriores de uma situação que, antigamente, merecia o nome de "remediada". Ou seja, cheia de remédios para sobreviver sem necessidade de catar lixo, guimbas de cigarro e mesmo vender perus. Não podia ir muito longe.
Aos 20 anos podia recitar trechos de Homero, sabia latim e tinha intimidade com a literatura patrística, mas não sabia tomar um bonde. Fui ganhar o piso salarial de reportagem que era mais um piso do que um salário. Recentemente, num desses programas de perguntas e respostas, quiseram saber se eu já estava rico. Estranhei o "já". O pessoal da produção me considerava rico. Respondi que continuava remediado, ou seja, cheio de remédios que tomo pela manhã e à noite para controlar complicado metabolismo cuja deplorável função é me manter vivo.
A pergunta seguinte foi mais grosseira: "E por que eu não tinha enriquecido?" Bem, em primeiro lugar, não tinha a obrigação de enriquecer. Além disso, a riqueza nunca foi uma prioridade minha, um objetivo na vida. Foram respostas calhordas, reconheço. Deveria ter dito que nunca vendi perus nem catei lixo nas ruas. Teria sido mais honesto e verdadeiro.
Deixei assim de cumprir uma das regras essenciais para a profissão de rico. Restou-me, é verdade, aquela apelação do dr. Fausto: vender a alma -e bem que tentei. Lembro o dia e as circunstâncias, só não lembro o motivo específico que me levou a momento tão transcendental. Talvez tenha sido um pedaço suplementar de torta de banana -minha sobremesa preferida na infância- ou deixar de tomar um purgante. Antigamente, os purgantes eram letais, quem resistisse ao gosto abominável era um herói e merecia ser salvo.
Não vendi a alma por preço extravagante, propus o negócio em módicas bases. Procurei ser honesto, avaliei com seriedade o patrimônio de que dispunha, evitei me superfaturar. Infelizmente, o demônio não se deixou embrulhar. Sabia que a minha alma não valia o pedaço da torta de banana. Ou a colher viscosa com o purgante letal.
Dono de um bem desvalorizado, em situação mais ou menos idêntica à da Vale do Rio Doce, que está para ser vendida, o demônio não se mostrou muito interessado na transação. Para que gastar munição para ter uma alma que, mais cedo ou tarde, cairia em suas mãos por gravidade?
Não me deu o ar de sua presença e de seu enxofre -e eu bem que aspirei o ar do Lins de Vasconcelos, para ver se ele aparecia com a torta na mão, quentinha, untada de manteiga. Achou, com boas razões, que aquela alma seria dele de graça. E nada fez para me comprar. A alternativa que me restou foi a de continuar vivendo, sem muita convicção nem motivo, mas com a última esperança a que me permito: a de não terminar a vida catando lixo aqui na Lagoa nem sendo obrigado a vender perus.

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