São Paulo, sexta-feira, 14 de março de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

"Fargo" leva cinismo dos Coen ao Oscar

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DE CINEMA

O que mais impressiona no cinema dos irmãos Coen -para o bem e para o mal- é o cinismo do olhar.
Diante de um grupo de gângsteres ("Ajuste Final"), um bambolê ("Na Roda da Fortuna") ou um marido que manda sequestrar a própria mulher ("Fargo"), pouco importa, há em seus filmes uma constante estupefação diante daquilo que vêem.
É como se o mal que mostram -Joel na direção, Ethan na produção- estivesse em um outro mundo, em outro país, em um lugar que não habitam.
A vantagem imediata dessa aproximação das coisas que promovem é a originalidade.
Num cinema com tradição moral, como o americano, a frieza é uma qualidade rara.
Esterilidade
Com isso, e algum humor, "Fargo" consegue empurrar uma intriga que não chega a ser inédita -pelo contrário- e nunca passar a impressão de clichê.
A desvantagem é que, à força de não se contaminar por aquilo que mostram, os irmãos Coen tendem a alguma esterilidade retrospectiva. Exemplo: o que há de mais humano -por assim dizer- e memorável em "Ajuste Final" é o olhar de um cachorro que de tempos em tempos entra em cena.
O que permanece de mais marcante em "Barton Fink" -que ganhou o Festival de Cannes- é um incêndio.
Passada a primeira (e boa) impressão, notamos que outros filmes sobre roteiristas -como "Crepúsculo dos Deuses", de Billy Wilder, para não ir longe- nos informam mais sobre Hollywood, seus roteiristas, as concessões a que a vida força um homem, a escrita e seus desvios do que "Barton Fink".
Essa curiosa degeneração que o tempo impõe ao cinema dos Coen é sempre mitigada por algum achado.
Em "Fargo", Frances McDormand é uma chefe de polícia -grávida- que investiga o caso em que está envolvido William H. Macy. Ele é o marido que forja o sequestro da própria mulher, para faturar algum à custa do sogro.
Estamos em princípio no registro policial.
Joel e Ethan Coen promovem, como o diretor Quentin Tarantino, mas em outra direção, uma reciclagem do classicismo norte-americano.
Ao contrário de Tarantino, essa reciclagem não é ostensiva. Há mesmo qualquer coisa de escuso nela que, num primeiro instante, o cinismo absorve, contorna, converte em impressão de um pensamento sobre as coisas.
Mas, quanto mais vemos os filmes, menos esse pensamento aparece. Quer dizer, ele existe. Mas, convenhamos, não é tudo isso.
Existe ali, por exemplo, a crítica a uma suposta imbecilidade dos norte-americanos.
Mas: será que isso não se aplica a qualquer coisa, a qualquer povo, desde que a disposição seja esta?
No fim das contas, o menor dos policiais de Raoul Walsh -aqueles que ele dirigia do bar ao lado do "set"- acabam nos informando mais sobre a humanidade, os costumes, a dor, a tragédia, a beleza, a sordidez etc. do que o maior dos filmes dos Coen.
Hoje, pode-se saber o que foram os EUA, entre 1920 e 1960 vendo os filmes de Walsh. E Walsh nunca nem passou na porta do Oscar.
Com "Fargo", os Coen vão ao Oscar- o longa concorre aos prêmios de melhor filme, diretor, atriz, ator coadjuvante, fotografia, roteiro original e montagem.
Mas, se um historiador futuro buscar nele o que foram os anos 90, achará menos: apenas que mulheres grávidas -que amam e sustentam maridos vagamente vadios- podiam ser boas chefes de polícia.

Filme: Fargo
Produção: EUA, 1996
Direção: Joel Coen
Com: Frances McDormand, William H. Macy, Steve Buscemi Quando: reestréia hoje nos cines Paulistano e Butantã 3

Texto Anterior: Autor fez besteirol
Próximo Texto: Cohen apresenta "Concerto nº 1" de Tchaikovski no Municipal
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.