São Paulo, domingo, 16 de março de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O ESPÍRITO DA COLMÉIA

JOÃO BATISTA MELO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Para Dolly
As abelhas eram novelos dourados em torno de meu pai, como pequenos satélites irisados de luz. Na verdade, à distância eu não tinha como definir-lhes a cor, captando-lhes apenas o movimento de negras esferas. Somente quando um inseto avulso se afastava da colméia e vinha pousar nas flores do jardim, nas janelas da casa, ou mesmo em minha mão trêmula, eu podia decifrar-lhes o corpo ovalado, a mancha amarela na bundinha vibrátil, o ferrão e as antenas, as frementes asas de plástico.
Mas não sei porque as abelhas me recordam papai. Afinal, restringia-se aos finais de semana aquele cenário povoado de vôos e zumbidos, quando íamos para o sítio de seu patrão, e papai passava a tarde extraindo dos alvéolos porções de favos, como se retirasse metais preciosos de minúsculas minas. A maior parte do tempo eu o relembro é no traje de garçom com o qual ele ganhava a vida num restaurante da zona sul. Ou então o revejo no apartamento com sala e cozinha conjugadas onde cruzei a infância e boa parte da juventude. Secávamos roupas e panelas no mesmo varal, víamos TV de frente para o fogão e dormíamos num beliche, ele, na cama mais baixa e eu, no nível superior.
Papai não conversava muito. Nunca o vi exaltado, rebelde ou impaciente. Se no restaurante algum cliente o destratava ou o patrão em dia de maus eflúvios o humilhava, ele se resignava em seguir para casa cabisbaixo e a se deitar calado na cama, quebrando o silêncio apenas para desejar-me boa-noite. Nos raros dias de ócio, gostava de ir ao cinema ver comédias românticas ou então de se assentar em alguma praça no centro da cidade com um exemplar de uma revista da Walt Disney.
Quando eu tinha cinco anos, perguntei-lhe por minha mãe. Como sempre, ele se recolheu na perplexidade de sua introspecção. Mas no domingo seguinte, do alto de uma roda gigante, mostrou-me o mundo e contou sem rodeios a nossa história. Na realidade, ele não era o meu pai, e ele próprio, por sua vez, nem ao menos fora adotado por alguém. Crescera num orfanato, saindo dali quase direto para o emprego de garçom onde o vi ao longo de toda a vida.
Quanto a mim, fui largado bebê numa escadaria em frente ao prédio onde ele morava. Encontrando-me ao voltar do trabalho, ele me recolheu como mais tarde faria com os favos de mel, levando-me para o abrigo do apartamento. Cuidou de mim sozinho, com a sabedoria de quem no orfanato vira chegar intermináveis levas de crianças de todas as faces e tamanhos.
Conhecer bruscamente a nossa coincidente ruptura de laços com o resto do mundo, desgarrados eu e ele como duas ilhas de um mesmo arquipélago, ao invés de nos afastar nos tornou cada vez mais unidos. Mesmo com a chegada das inevitáveis crises da adolescência, em muitas ocasiões calei-me em respeito ao seu silêncio constrangido. Afinal, mais que pai e filho, éramos irmãos no desconhecimento de nossas origens, ambos desprovidos dos ramos que tecem as genealogias.
Comecei a trabalhar cedo, vendendo jornais nos semáforos de rua e lustrando sapatos de executivos. Estudei nas noites e madrugadas, sempre acompanhado pelo zelo de papai. Foi nessa época que tiveram início as viagens ao sítio. Eu não o ajudava no trabalho, receoso das agulhas que as abelhas fincavam. Preferia vê-las de longe, tantas e tão parecidas, como cópias reproduzidas ao infinito. Lá pelos 10 ou 11 anos, perguntei a papai de onde vinham as abelhas. A resposta recebi alguns anos depois, quando no colégio expuseram uma colméia aprisionada em vidro, os alvéolos e câmaras partidos ao meio como desenhos em relevo. O professor riscou de giz o quadro negro, reproduzindo os óvulos de futuro traçado. Alguns se converteriam em machos, outros, em soldados estéreis. E aqueles escolhidos desde a gestação se tornariam rainhas, que depois migrariam para novas colméias, onde iriam parir novas abelhas sob a tutela dos soldados fiéis.
"As abelhas sabem de onde vêm?", perguntei a papai, tendo como resposta apenas um sorriso.
Na adolescência, papai revelou-me o único detalhe que conhecia acerca de minhas raízes, dizendo-me que logo na primeira noite surpreendera-se ao descobrir em meu pênis o talho dos circuncisos:
" Ele é judeu!...", comentara consigo mesmo, sorrindo baixinho no quarto mal iluminado, enquanto desfraldava-me e outra vez me cobria com a proteção de um diminuto casaco.
Integrei-me ainda jovem à comunidade judaica, sob a aprovação desinteressada, mas indulgente, de papai. Guardei o Yom Kipur, comi pães ázimos e cobri-me com o círculo dos solidéus. Acompanhei Moisés através do mar Vermelho, pesquisei os passos dos êxodos e das diásporas. Aturdi-me com a imagem dos corpos convertidos em dejetos junto às cercas de Bergen-Belsen e de Auschwitz.
Mas constatei que não me satisfazia conhecer a árvore, eu queria todos os galhos em suas mais ínfimas bifurcações. Assim, vasculhei cartórios e delegacias à cata de pistas que me conduzissem aos meus pais verdadeiros. Não desejava descobri-los para derramar-me em seus braços desertores, pois para mim papai era papai e nele se encerrava o meu conceito de família. Chamava-me na verdade uma curiosidade renitente, uma vontade quase doentia de mapear os laços de minhas origens. A mesma atração que me levou mais tarde a procurar os antepassados de papai. Cheguei a visitar o orfanato onde fora criado, mas desisti diante da impossibilidade de encontrar os vestígios já apagados por 50 anos de mudanças.
Enquanto isso, preservávamos os mesmos hábitos tranquilos que mantivéramos por toda a vida. Tomávamos juntos o café da manhã, já que nos almoços e jantares abdicávamos do convívio para que papai servisse no restaurante outras famílias que ali se uniam nas refeições. À noite, antes de dormir, sempre trocávamos informações sobre os acontecimentos do dia. Viajávamos aos sábados para que papai ganhasse algum dinheiro a mais, garimpando mel nas colméias do sítio. Tomávamos cerveja em casa nas tardes de sábado.
Nesse meio tempo, consegui um emprego mais duradouro numa agência de banco. Rapidamente alcancei a gerência e nossas finanças ganharam novos ares, levando-me até a propor a papai que largasse a atividade de garçom, uma vez que sua idade já avançava além da capacidade de suster bandejas carregadas de pratos.
Logicamente, ele não concordou e prosseguiu em seu trabalho até o dia em que uma dose de uísque tombou na gravata importada de um cliente. Convidado pelo patrão a se aposentar, passou a viver os dias quieto em nosso novo apartamento, exceto nos fins-de-semana, quando eu o levava ao cinema ou à praça do centro onde antigamente se assentava. Uma vez passamos uma tarde inteira na escadaria onde ele me achara, vendo o tráfego dos carros e dos meninos de rua.
Durante muito tempo não revi as abelhas, pois raras se aventuravam entre os paredões de concreto que permeiam a cidade. Somente fui reencontrá-las uma década depois, ao lado de minha mulher e de meu filho, que papai não chegou a conhecer. Estávamos na casa de um amigo, situada num bairro onde as plantas ainda acham espaço para germinar. O menino me chamou eufórico e me mostrou a colméia incipiente, gomos de cera compondo os alvéolos ainda pequenos, mas já circundados pelos insetos vigilantes. Sentei-me na relva, vendo na luz do entardecer a coloração sedosa dos favos de mel. E, então, ouvindo o vôo dourado das abelhas, contei ao meu filho a história de meu pai.

Texto Anterior: CARTA AO INVENTOR DA MODA
Próximo Texto: A PEDEMBEQUE - A VINGANÇA DE DOLLY
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.