São Paulo, domingo, 16 de março de 1997
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UM SÓ SEU FILHO

BRAULIO TAVARES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Naquela noite, o papa atravessou sua recorrente insônia com a ajuda de algumas páginas do tratado ilustrado de Mary D'Imperio sobre o manuscrito Voynich, na edição de luxo de 1994. Leu até que os nomes de John Dee e Roger Bacon pareceram misturar-se e seus olhos começaram a arder. Usando os óculos dobrados para marcar a página, colocou o livro sobre a mesa de cabeceira e apertou o botão que mergulhou o quarto nas trevas. Fez suas orações deitado, uma auto-indulgência da qual teria se envergonhado aos 60 anos, mas que agora já lhe parecia um direito adquirido. Também lhe sucedia às vezes adormecer antes de concluir as preces; isso também não o inquietava mais. Pensava: "Deus enxerga meu coração; ele sabe que meu pecado não é este, que minhas dívidas são outras".
- Este foi o teu último dia sobre a Terra -disse uma voz ao seu lado. Tens agora o direito de fazer um último pedido.
Ao seu lado havia uma forma que a princípio ele tomou por um homem de pé, depois por uma árvore, depois por uma nuvem vertical. Seus traços podiam corresponder a qualquer uma das coisas, e ele imaginou que aquilo era Deus.
- Obrigado, Senhor -disse. Não mereço esta graça.
- Todos os homens a recebem -disse a voz. Não és melhor do que ninguém.
Sem saber o que responder, ele inclinou-se mais uma vez. Pensou: "É meu último dia de vida, mas isto não deve me amedrontar; é como quando após uma refeição alguém retira de minha frente o prato vazio. Por que me rebelar, se já fruí o que me interessava?".
- Olha para tua mão -disse a voz. O que mais desejas?
Ele fitou a palma da própria mão: viu com espantosa nitidez as linhas e as comissuras da pele, viu as rugosidades, o intrincamento têxtil das camadas superpostas, viu o fervilhar da matéria viva e as células que se partiam e se fundiam umas às outras como gotas d'água.
- Nascer de novo -respondeu ele, sem pensar.
- Queres voltas ao passado?
- Quero nascer de novo, mas no futuro -retrucou. Quero nascer sob a forma de outra pessoa e saber se serei novamente seminarista, e padre, e cardeal, e papa. Quero que algumas destas minhas células sejam transplantadas para um tubo de ensaio e dali talvez para um ventre, de onde eu renasça: corpo, rosto e mente iguais aos que tive quando nasci. Código genético igual ao meu, sem a interferência abastardante dos genes de uma fêmea, de uma parideira intrusa. Quero que meu espírito se faça carne, mas quero ser o Pai único de meu Filho.
- Para quê?
Ele ergueu-se e maravilhou-se de ver que mesmo diante de Deus podia ficar de pé quando bem entendesse ("mas, ai", pensou, "é o último dia"). Olhou o vale que se espalhava lá embaixo: à luz roxa que vinha do céu, distinguia florestas, mares, arquipélagos, cidades, desertos de areia intacta, enormes cordilheiras de gelo rodopiando devagar em águas de um azul metálico. Cruzou os braços e virou-se para o vulto.
- Se minha alma existe, está ligada sem remissão a este corpo mortal. Se meu corpo se repetir, minha alma permanecerá aqui na Terra. De novo nascerei e serei um menino que irá dançar ao som de pandeiros e rabecas; de novo roubarei frutas, correrei atrás de cães, beijarei a boca de alguma moça de tranças louras. De novo estudarei o latim e a álgebra, de novo andarei anônimo e de batina por entre homens arrogantes que não suspeitarão o meu futuro. Farei voto de pobreza e viverei depois como um monarca; farei voto de obediência e subirei degrau após degrau das hierarquias de comando; farei voto de castidade... e quem sabe na próxima vez tenha mais sorte.
Lá embaixo, no vale, a luz crescia, e ele já enxergava centenas de metrópoles e cada janela de cada casa, e cada rosto adormecido por trás de cada janela.
- Ninguém teve essa segunda chance -disse a voz, mas sem tentar persuadi-lo.
- O que pedem os homens, então?
- Pedem dinheiro, poder, mulheres. Pedem oxímoros, paradoxos: juventude eterna, imortalidade do corpo... Tu pedes que teu corpo se multiplique. E se, em vez de um, fizerem dois? De quantas almas irás precisar? E se fizerem 20, 200?
Ele voltou a sentar-se. Sabia que quem acabara de fazer aquele pedido não era o ancião calejado pelos debates escolásticos, o erudito capaz de enfrentar a teologia e a metafísica em 12 idiomas e, sim, o rapaz que numa noite de febre sentira pela primeira vez, no pulsar dos próprios gânglios, a semente da morte crescendo dentro de si.
- Vai, pede -disse a voz; e, sem surpresa, ele soube naquele instante que aquela voz não era Deus. Estendeu a mão para o vulto, e tocou nele.
O camareiro, que se chamava Gesualdo, encontrou-o pela manhã; apalpou a pele fria do seu rosto, viu os olhos azuis virados para o teto. Gritou por socorro e teve a precaução de não tocar em nada no quarto.

Bráulio Tavares é escritor, autor de "A Espinha Dorsal da Memória" e "Mundo Fantasmo" (Rocco), entre outros.

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