São Paulo, domingo, 16 de março de 1997
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o eterno abc de CASTRO ALVES

MARILENE FELINTO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

a Afrobrasilidade:
"Ela era a cria mais formosa e meiga/ Que jamais, na Fazenda, vira o dia.../ Morena, esbelta, airosa... eu me lembrava/ Sempre da corça arisca dos silvados/ Quando via-lhe os olhos negros, negros/ Como as plumas noturnas da graúna" ("Lúcia").

"Foi depois do dilúvio... Um viandante,/ Negro, sombrio, pálido, arquejante,/ Descia do Ararat... /E eu disse ao peregrino fulminado:/ 'Cam! serás meu esposo bem-amado.../ Serei tua Eloá...'±" ("Vozes d'África").

"Onde vais à tardezinha,/ Mucama tão bonitinha,/ Morena flor do sertão?/ (...)/ Mimosa flor das escravas!" ("Maria").

No que se refere ao tema que o consagrou -os negros, a escravidão-, o chamado "poeta dos escravos" talvez não passasse da esquina hoje em dia, tratado como politicamente incorreto e olhado com desconfiança (pelos movimentos negros), não somente por ser branco como por ter atenuado os caracteres físicos dos africanos em seus versos às "moreninhas".
Mas é exatamente essa queda para o demagógico que faria sua poesia corresponder tão bem ao gosto poético popular. Os poemas "Lúcia" -que trata de um poeta menino brincando com crianças escravas- e "Maria" dão conta da espécie de maquiagem a que até mesmo o corajoso Castro Alves precisou recorrer para introduzir o negro na literatura: transformá-lo no indistinto miscigenado brasileiro, o mulato, o moreno até hoje mais aceito.

e Erotismo:
"Mulher do meu amor! Quando aos meus beijos/ Treme tua alma, como a lira ao vento,/ Das teclas de teu seio que harmonias,/ Que escalas de suspiros, bebo atento!" ("Boa-Noite").

Castro Alves mantinha relações amorosas muito avançadas para seu tempo. Morava com as mulheres por quem se apaixonava, mas sem se casar. Uma delas chamava-se Idalina, com quem viveu quando era calouro da Escola de Direito do Recife. A outra, o grande amor de sua vida, foi a atriz portuguesa Eugênia Câmara, com quem também viveu em Recife.
Ele foi o primeiro romântico brasileiro a tratar a mulher como ser de "carne e osso" em sua obra. Sua poesia amorosa, a menos retórica de sua obra, é sensual e exprime abertamente o amor como desejo de corpo também.

p Povo:
"Quando nas praças s'eleva/ Do Povo a sublime voz.../ Um raio ilumina a treva/ (...)/ A praça! A praça é do povo/ Como o céu é do condor" ("O Povo ao Poder").

"É o grito dos Cruzados/ Que brada aos moços -"De Pé!"/ É o sol das liberdades/ Que espera por Josué!.../ São bocas de mil escravos/ Que transformaram-se em bravos/ Ao cinzel da abolição./ E -à voz dos libertadores-/ Reptis saltam condores,/ A topetar n'amplidão!..." ("O Século").
A poesia romântica condoreira (que tinha como símbolo o condor, pássaro capaz de altos vôos) era também poesia de cunho social ou de denúncia. Na poesia de Castro Alves, é o recurso da oratória que fortalece o efeito de denúncia. Por um lado, ao assumir um compromisso com a vida, "inserindo-se deliberadamente no tempo histórico e social" a eloquência de Castro Alves aparece como força realmente poética. Por outro, atua no limite do populismo.
O poeta mudou-se de Recife para São Paulo, onde sua poesia "libertária e abolicionista" seria estimulada, no pátio interno da Faculdade de Direito de São Paulo, no Largo São Francisco, por uma juventude dada à poesia, à política, às idéias liberais.
"Poesia dessas, de eloquência tonitruante, é hoje indigerível", diz Carpeaux, "mas não se pode duvidar da influência enorme que exerceu, transfigurando a América em Nova Atlântida, continente da democracia". Segundo ele, o "patético Castro Alves" ainda é considerado o mais popular dos poetas nacionais.

p Paixão (não correspondida):
"Morrer de frio quando o peito é brasa.../ Quando a paixão no coração se aninha!?/ Vós todos, todos, que dormis em casa,/ Dizei se há dor, que se compare à minha!..." ("Canção do Boêmio").

r Racismo:
"Senhor Deus dos desgraçados!/ Dizei-me vós, senhor Deus!/ Se eu deliro... ou se é verdade/ Tanto horror perante os céus.../ Ó mar, por que não apagas/ Co'a esponja de tuas vagas/ De teu manto este borrão?.../ Astros! noite! tempestades!/ Rolai das imensidades!/ Varrei os mares, tufão!... (...)
E existe um povo que a bandeira empresta/ P'ra cobrir tanta infâmia e cobardia!/ Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,/ Que imprudente na gávea tripudia?!.../ Silêncio!... Musa! chora, chora tanto/ Que o pavilhão se lave no teu pranto..." ("Navio Negreiro").

Onde se lê "escravidão" na poesia de Castro Alves, ler-se-ia hoje, sem perda de qualidade estética, "racismo". Mas o "poeta do escravo" não tem como mérito ter efetuado a "penetração simpática na alma do negro". Era branco. Sua militância ficou aquém disso. Seu mérito foi o de ter imposto "o escravo à sensibilidade burguesa (...) como ser igual aos demais no amor, no pranto, na maternidade, na cólera, na ternura".
Sua poesia abolicionista é considerada a mais vigorosa em recursos estilísticos e vocabulário. Mas não retrata o negro, apenas exprime um ideal de justiça pelo qual se queria lutar. Foi sobretudo importante como poeta de uma transição social, do feudalismo escravocrata ao liberalismo burguês, como disse Carpeaux.

s Solidão:
"A alma fica melhor no descampado.../ O pensamento indômito, arrojado/ Galopa no sertão,/ Qual nas estepes o corcel fogoso/ Relincha e parte turbulento, estoso,/ Solta a crina ao tufão" ("Sub Tegmine Fagi", verso de Virgílo, em latim, que significa "Sob a sombra da faia").

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