São Paulo, domingo, 16 de março de 1997
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A sobrevivência de um pioneiro

NELSON AGUILAR
ESPECIAL PARA A FOLHA

A coletânea de escritos de Mário Pedrosa (1900-1981) organizada por Otília Arantes tem o mérito, em dois volumes já publicados dos quatro prometidos, de dar o retrato de corpo inteiro do crítico. O projeto assume essa ambição, pois republica diversos ensaios de antologias disponíveis no mercado.
O primeiro volume, "Política das Artes", trata do posicionamento social do artista, de instituições e da relação da arte latino-americana com o circuito internacional. Traz a primeira análise marxista referente às artes plásticas realizada no Brasil, "As Tendências Sociais da Arte e Kãthe Kollwitz" (1933). O texto possui a fulguração das informações de primeira mão, das experiências vividas, deve a originalidade à coerência do militante que não teme a clandestinidade, as prisões, a ditadura. Quem escreve o ensaio é o comunista a caminho de Moscou, em 1927, pronto para estagiar na Escola Leninista. Detém-se na Alemanha percebendo a estreiteza da política stalinista e gasta o tempo a se reciclar no que de mais interessante acontece na filosofia, sociologia e psicologia na República de Weimar. Retorna ao país, rompe com o partido e organiza o movimento de oposição da esquerda.
Interpreta a obra de Kollwitz à luz do surgimento da classe operária no modo de produção capitalista e destaca como a artista inventa na história da arte a sensibilidade feminina no momento de transição revolucionária. O estilo novo de abordagem influencia a melhor crítica brasileira. Mário de Andrade inspira-se em Pedrosa para discorrer sobre Portinari e posteriormente penitenciar-se do credo esteticista.
No volume 2, "Forma e Percepção Estética", reaparece a tese defendida para um concurso de cátedra de história da arte e estética, da Faculdade Nacional de Arquitetura, Rio de Janeiro, em 1951, "Da Natureza Afetiva da Forma na Obra de Arte". Também aqui o crítico pernambucano faz papel de pioneiro. A tese valeria apenas pela tentativa de introdução da psicologia da forma no campo das artes plásticas. Os fundadores da "Gestalttheorie", Kurt Koffka, Max Wertheimer e Wolfgang Kõhler, produziram um só texto sobre arte -a comunicação do primeiro em simpósio na Pensilvânia em 1939-, não por desinteresse, mas porque nutriam respeito sacrossanto pelo campo artístico, considerando-o paradigmático para a investigação da percepção.
Pedrosa é classificado em segundo lugar, sendo contemplado um trabalho anódino sobre Velázquez de autoria de Carlos Flexa Ribeiro. Cícero Dias, que faz parte da claque, consola Mário com a verve costumeira: "- Você não devia ter falado alemão com o júri..."
Mais do que a letra da tese, importa o espírito que irá zelar sobre o futuro de movimentos artísticos brasileiros incisivos, como o concretismo e o neoconcretismo. A psicologia da forma privilegia o fenômeno, o acontecimento no campo perceptivo que se dá como um todo para a partir daí se significar. Na apreciação da obra de arte, os elementos formativos passam a predominar sobre constelações figurativas já consolidadas como no modernismo brasileiro, por exemplo. Ocorre a conjunção história da militância de Mário em prol da abstração geométrica e do período fulgurante da Revolução Russa quando a "intelligentsia" tenta construir uma linguagem baseada exclusivamente no som e na imagem a fim de se comunicar com as cinquenta e tantas etnias da nascente União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.
As telas com a paginação límpida de Sacilotto, Lygia Clark ou Hélio Oiticica valeriam como debêntures descontáveis em futuro próximo quando a nova bandeira vermelha tremularia no mundo inteiro, signo do triunfo do primado trotskista da revolução permanente e da derrota do dogma stalinista da revolução em um só país. Sem esse fundo de sentido, não se compreende a vitalidade exuberante do crítico pela supremacia da forma.
Secretário-geral da 6ª Bienal de São Paulo (1961), viaja finalmente à Rússia desta vez para trazer obras dos artistas dos anos heróicos relegados às reservas da galeria Tretiakov, sem sucesso. O fato de ter colocado toda a vontade combativa nos construtivistas e nos arquitetos brasileiros torna-o uma referência incontornável.
Um texto básico para compreender o último Pedrosa está em "Política das Artes" e descreve a proposta para o novo programa do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, consumido pelas chamas em 1978. A instituição se dividiria em cinco segmentos autônomos, mas orgânicos: o Museu do Índio, o Museu de Arte Virgem (do Inconsciente), o Museu de Arte Moderna, o Museu do Negro e o Museu de Artes Populares.
A resistência ao projeto foi brava. O "trustee" do MAM-RJ e cirurgião plástico Ivo Pitanguy descartou-o veementemente, conseguindo convencer os pares. A diretora da entidade por ocasião do sinistro, Heloísa Lustosa, atualmente à frente do Museu Nacional de Belas Artes, tenta implantá-lo aos poucos em seus recintos.
O pleito de Pedrosa até hoje detém uma qualidade visionária que merece verificação empírica. O sucesso na 46ª Bienal de Veneza de Arthur Bispo do Rosário, interno da Colônia Psiquiátrica Juliano Moreira, e sua irradiação na arte contemporânea nacional atesta o ajuste de um dos segmentos.
O reconhecimento, desta vez na 1ª Bienal de Johannesburgo, da extrema qualidade artística de Marcos Coelho Benjamin, por estar imbuída da presença do artesanato do Vale do Jequitinhonha, aponta para a interação do popular no erudito, num registro surpreendente. Mestre Didi, na 23ª Bienal de São Paulo, ao mesmo tempo exibe e apaga as fronteiras da arte afro-brasileira. Roberto Evangelista, na mostra citada, evidencia a complexidade da coexistência entre indígenas e despossuídos. A confluência de todas essas vertentes constitui a arte do país que está ainda longe de ser experimentada, compreendida e interpretada como dinâmica das etnias formadoras, no entanto está significada com extrema felicidade em Mário Pedrosa.
As capas dos dois volumes recorrem sugestivamente a El Lissitsky e Malevitch, a escolha da iconografia presta serviço ao texto, porém a revisão de "Forma e Percepção Artística" não merece a chancela de uma editora universitária. Excluindo as inúmeras gralhas, eis um repertório de desatenções que não poderia acontecer ainda mais em livro que lida com a psicologia da forma: na pág. 46, 38ª linha, onde se lê "Henri Vallon", leia-se "Henri Wallon", assim como à pág. 49, 27ª linha; na mesma pág., mesma linha, leia-se "Rousseau" em lugar de "Rosseau", e na linha seguinte, "Rousseau" em lugar de "Russeau"; na pág. 108, 26ª linha, onde se lê "próprias artes", leia-se "próprias partes"; na pág. 123, 11ª linha, onde se lê "diferenciação ética", leia-se "diferenciação ótica"; na pág. 139, 25ª linha, onde se lê "à página 115", leia-se "à página 137"; nas págs. 150 e 151, nota 5, leia-se "Baudouin" em lugar de Boudouin"; na pág. 162, nota 26, onde se lê "E. Katz", leia-se "D. Katz"; na pág. 167, 22ª linha, onde se lê "Eles primeiro pegou", leia-se "Ele primeiro pegou"; na pág. 183, nota 4, onde se lê "F. Prinzhorn", leia-se "H. Prinzhorn", o mesmo ocorrendo na nota 44 à pág. 215; na pág. 186, para esclarecer a citação de André Breton, seria necessário alongá-la de maneira a englobar a comparação que o surrealista faz entre a construção do ninho pelo pássaro e a melodia, sem o que se torna misteriosa a menção de ninho e melodia na 12ª linha.

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