São Paulo, domingo, 16 de março de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A alternativa do pensamento

PAULO SÉRGIO PINHEIRO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Nos idos dos anos 1920, muitos pregadores católicos visitavam o Brasil para ajudarem a debelar o anticlericalismo e a maçonaria. Um desses, o padre francês Gaffré, conta-nos em seu livro "Visions du Brésil" que foi visitar em Campinas uma grande plantação de café. Era a fazenda Rio das Pedras, onde iria ser instalada no final dos anos 60 a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Mal sabia o pregador que, meio século depois, um outro francês, Michel Maurice Debrun, ali iria implantar o departamento de ciências sociais do recém-constituído Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, o IFCH.
Credenciais impecáveis. Debrun licenciara-se em ciência política pelo Institut d'Études Politiques de Paris. Tinha se formado pela École Normale Supérieure, a prestigiosa Normal Sup, da rua d'Ulm, em Paris, e passara o rigoroso exame da "agrégation" com enorme sucesso. Era especialista em Merleau-Ponty.
Debrun, antes de chegar a Campinas, já tinha uma longa história de associação com o Brasil. Nos anos 1950 e 1960, fora professor no Instituto Superior de Estudos Brasileiros, o Iseb, fundado com apoio de Juscelino Kubitschek para ser o "thinking tank" das teorias do desenvolvimento nacional. Ali, iria escrever um dos estudos clássicos sobre a ideologia brasileira.
Depois do período do Iseb, foi professor de filosofia na Universidade de São Paulo (USP), onde exerceu enorme influência. E, em seguida, como especialista da Unesco em educação, passou larga estada no Irã.
Em Campinas, nos barracões da nova universidade, lá estava Michel Debrun, à frente do departamento de ciências sociais.
Em volta dele, economistas, historiadores, antropólogos, linguistas, recém-graduados na França, outros já professores na USP, professores visitantes vindos dos Estados Unidos e da Inglaterra, reunidos pela tenacidade visionária do diretor e fundador do IFCH, Fausto Castilho.
Debrun, assumindo risco, no começo dos anos 1970, em pleno regime militar, contribuiu decisivamente, com sua liderança suave e sempre bem humorada, para que na Unicamp se consolidasse um centro de pensamento crítico e alternativo.
Naqueles tempos em que chegávamos da França, inundados pelas lições dos ícones de Maio de 68 -Althusser, Poulantzas, Foucault-, Debrun oferecia-nos um distanciamento crítico, sem nenhum dogmatismo, obrigando-nos a sair do encantamento imobilizante com os nossos mestres parisienses e a construir os próprios passos. Aliás, escandalizava-nos (com tons absolutamente sinceros) que preferisse viver em Campinas do que em Paris.
Esses inesperados circuitos permitiram a Debrun pensar sempre em termos internacionais comparados. Dominava inteiramente a história política e os pensamentos brasileiros e conseguiu ver como ninguém as continuidades da nossa formação ideológica. Transitava com naturalidade das análises da vida parlamentar no Império para a República, de Bernardo Pereira de Vasconcelos para Tancredo Neves, com intimidade plena com os fatos políticos.
Pensava a formação ideológica brasileira organizada em torno de "arquétipos", elementos permanentes em combinações múltiplas na história. Entre esses, trabalhou como nenhum outro cientista político o "arquétipo" da conciliação. Suas análises e entrevistas sobre a longa transição do regime militar de 1964 para a democracia, reunidas em "A Conciliação e Outras Estratégias", esbanjam claridade, percepção e desvendamento.
Curioso foi ver Debrun, que tinha estado nas bancas de doutorado e livre-docência de uma centena de professores, e dali a pouco professor emérito da Unicamp, apresentar nos 1980 tese sobre a noção de estrutura e superestrutura em Antonio Gramsci que é um marco nos estudos das relações entre ideologia e sociedade.
Nos últimos anos, teimava com ele que era preciso publicar a tese. Era modesto e doentiamente perfeccionista: não queria, dizia em tom de pilhéria e verdade, porque não conseguia mais distinguir entre Gramsci e ele no texto -e preferia não correr riscos.
Alegava estar imerso em dois outros livros sobre ideologia brasileira e que agora lhe interessavam mais os estudos, que acabam de ser publicados, sobre teoria do caos, no seminário que animava no Centro de Lógica e Epistemologia.
O melhor memorial que o IFCH e a Unicamp podem fazer a um de seus pais fundadores mais brilhantes é -com a ajuda de Solange, sua mulher, que conhece toda sua obra, pois foi sua permanente e competente interlocutora, e de sua filha Danielle- publicar a obra de Debrun.
Falava um português impecável, colorido, encantado com as falas coloquiais que empregava na conversa e nas conferências mais eruditas. Tudo com um sotaque francês carregadíssimo, que dava um encanto especial a sua fala e aos seus gestos. Com os seus inseparáveis óculos de lentes escuras, Debrun estava sempre pleno de energia e jovialidade. Era irremediavelmente rendido e dedicado ao Brasil. Que enorme privilégio, Michel Debrun, você nos deu, tão generosamente.

Texto Anterior: DIÁRIO; BIOGRAFIA; DICIONÁRIO; ENSAIO; ENTREVISTA; TEATRO; ECONOMIA; POESIA; ARTES PLÁSTICAS
Próximo Texto: A mulher que virou leitoa
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.