São Paulo, domingo, 16 de março de 1997
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O paciente brasileiro

GILBERTO DIMENSTEIN

O professor Carlos Albuquerque, hoje ministro da Saúde, acompanha fiscalizações federais realizadas nas faculdades de medicina desde 1983. Nessas investidas, ele detectou o vírus da impunidade.
Constatou que a punição está na esfera das remotas exceções, apesar das falhas diagnosticadas. Viu também as instituições não seguirem as recomendações deixadas pelas equipes de inspeção, indicadas pelo Ministério da Educação.
Carlos Albuquerque é professor há 30 anos, participou de equipes de avaliação de cursos de medicina e virou diretor de um dos centros de referência de saúde pública, o Hospital Universitário de Porto Alegre.
Apesar dessa qualificação, ele não dispõe de dados seguros sobre a formação do médico. "Ninguém sabe", afirma.
Mas pelo que viu e ouviu, desconfia que o provão, quando aplicado aos futuros médicos, vai deixar apreensiva a população.
A apreensão vai ganhar contornos de pânico se forem mantidos os níveis de mediocridade verificados no provão realizado no ano passado.
*
No caso do curso de medicina há uma agravante -é mais caro do que os demais cursos.
Exige investimento constante em máquinas e laboratórios e uso de hospitais para treinamento.
A julgar pelo vexaminoso desempenho das faculdades privadas no provão de administração e direito (cursos mais baratos, e, portanto, mais lucrativos), podemos imaginar o tipo de médico que grupos empresariais estão formando pelo Brasil.
E, óbvio, o tamanho da ameaça.
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Com o provão, o ministro Paulo Renato Souza criou acertadamente um problema para alunos e faculdades ruins.
Prestou um serviço ao jogar luzes num setor estratégico do país. Mas colocou uma dinamite em seu bolso e acendeu um pavio; vai ter, agora, de apagá-lo.
Os resultados dos exames, a serem divulgados no começo do próximo mês, revelam que a imensa maioria das escolas que tiveram pior desempenho é propriedade de empresários, as chamadas fábricas de diploma. O ministro ficou sem alternativa, sob o risco de omissão, e terá de fechá-las, caso não invistam para melhorar seu nível.
Os empresários têm interesse em seguir recomendações?
*
Para melhorar o nível educacional, porém, muitas deixam de ser lucrativas e não atraem mais os empresários.
Um trauma para centenas de milhares de estudantes que pagam mensalidades e sonham em virar profissionais. São as vítimas do vírus da impunidade, processo que envolve também a imprensa.
O governo autorizou o funcionamento do curso, não fiscalizou, mas o aluno pagou.
Ao contrário do que ocorre nos Estados Unidos, a imprensa brasileira não desenvolveu esquemas de avaliação detalhada do ensino superior.
Vamos reconhecer: nós nos concentramos na cobertura das delinquências públicas, colocando em um segundo plano as mazelas privadas -ainda hoje os direitos do consumidor não estão no topo das investigações jornalísticas.
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Nada contra empresários terem faculdade, muito pelo contrário. Não há contradição entre lucro e qualidade. No geral, as universidades públicas também não são exemplo de excelência.
O problema é a fragilidade dos direitos do consumidor por falta de fiscalização e punição -nesse aspecto, temos muito, muito mesmo, a aprender com os americanos.
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Por falar em delinquência. Vivi em Brasília nos tempos da ascensão e queda de Fernando Collor. É uma cidade especialmente imaginosa para criar fofocas e fantasias políticas.
Naquele período, eram tantos os indícios de falcatruas que a imaginação da cidade, já normalmente aguçada, era levada ao extremo. Inclusive com insinuações sobre drogas, suspeita do Departamento de Estado americano desde 1990.
O notável furo do repórter Lucas Figueiredo, publicado nesta semana na Folha, revelou detalhes da relação entre PC, a Máfia e o narcotráfico. E um fato raro: a trama é tão escabrosa que a fantasia política ficou bem menor do que a realidade.
De quebra, é mais uma ajuda para que ninguém se esqueça do que o impeachment nos livrou.
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PS - Há um documento nos arquivos do governo do DF (Distrito Federal) com nomes de 560 funcionários, a imensa maioria de aposentados, que ganham, em média, R$ 10 mil mensais. Alguns chegam a R$ 16 mil.
Como vivemos no reino dos privilégios adquiridos, travestidos de direitos, ninguém consegue reduzir aqueles ganhos.

Fax: (001-212) 873-1045

E-mail gdimen@aol.com

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