São Paulo, segunda-feira, 17 de março de 1997
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Verdades recentes

JOÃO SAYAD

A realidade brinca de esconde-esconde, aparece e desaparece, mas, com o tempo, mostra o rosto, deixa-se fotografar e até tirar as impressões digitais. Depois que aparece, fica tudo óbvio.
No início do século, muitos cientistas sociais brasileiros eram racistas e prognosticavam que o Brasil iria "branquear" por meio dos casamentos entre negros e brancos. Quarenta anos depois, foram os nazistas que se autoproclamaram arianos, e o mundo todo perseguiu os judeus. Graças a Deus, essas barbaridades, que já foram verdades, hoje são obviamente falsas. Não devemos ser ingratos com a verdade só porque ela se tornou óbvia.
O aparecimento da verdade reduz nossa aflição apenas parcialmente. Porque, mesmo quando ela aparece, é preciso que as conclusões e decisões sejam adequadas à realidade que apareceu.
O examão do MEC mostrou a verdade -a universidade privada e lucrativa não forma bem seus alunos. Não "entrega o produto prometido", na linguagem do setor financeiro.
Não é surpresa -universidade não dá lucro.
A universidade começa na biblioteca -um imenso estoque que, quanto melhor for, gira mais lentamente. Precisa de muitas obras de referência, de livros antigos e fora de moda que não são mais consultados, mas que precisam estar lá. A boa biblioteca não pode ser administrada com "just-in-time". Nem é possível terceirizar a biblioteca da universidade para a Blockbuster. Biblioteca dá prejuízo.
A boa universidade precisa de professores de todos os tipos. Professores muito didáticos, claros, empolgantes, que falem sobre clonagem para alunos de biologia, sobre telefonia celular para alunos de eletrônica, sobre balança comercial para alunos de economia. Professores que seriam muito lucrativos em cursinhos para vestibular.
Mas precisa também de outros tipos de professores. Professores tímidos e gagos, incapazes de se comunicar com os cem alunos da classe, que o atemorizam, mas inteligentes para refletir, pensar e criar. Esses professores só dão prejuízo. Mas são fundamentais para a boa universidade.
Além disso, a universidade tem de se dedicar a assuntos para os quais não existem consumidores ou mercado, como, por exemplo, matemática pura, física básica, arqueologia, sânscrito, história do pensamento econômico, sociologia, filosofia medieval etc. Nada disso dá lucro como os cursos e seminários de marketing, derivativos, "outsourcing", reengenharia etc.
No caso brasileiro, mesmo nas áreas em que não possamos contribuir para o conhecimento científico universal, a universidade tem a obrigação de manter professores, departamentos e pesquisadores cuja tarefa é apenas funcionar como antenas parabólicas que recebem, interpretam e arquivam os novos conhecimentos que outras universidades de outros países estão desenvolvendo.
Sua função é evitar que nosso atraso naquele campo de conhecimento fique maior ainda. Essa atividade é fundamental do ponto de vista do interesse público do país. Infelizmente, também não dá lucro.
Portanto, a universidade privada e lucrativa, invenção tipicamente brasileira, produz alunos que não são aprovados no "examão" do Ministério da Educação.
A verdade apareceu no Brasil em março de 1997. Agora temos que aguardar as conclusões que serão tiradas dessa verdade.
Primeiro, observamos aflitos a afirmação de que a universidade pública tem alunos ricos e a universidade privada, alunos pobres que não conseguem ingressar nas melhores escolas -e essa seria a razão do seu sucesso.
É preciso aguardar a próxima pesquisa, agora da Secretaria da Receita Federal ou do IBGE, para saber se isso é verdade. Duvido.
Mesmo se for verdade, o que fazer com ela? Nos Estados Unidos, paraíso das universidades privadas não lucrativas, a constatação de que os alunos brancos e mais bem preparados se concentravam em algumas escolas e os pobres, sem família e mal preparados em outras levou à idéia de "busing", ou seja, o transporte obrigatório de pobres e negros para escolas de brancos e ricos. Porque alunos ricos brancos trazem benefícios para os pobres e negros.
No Brasil, os alunos ricos são aprovados no vestibular para as melhores universidades. E as universidades boas são boas também porque têm alunos ricos.
Poderíamos subsidiar os alunos bem preparados e ricos, pagando parte da mensalidade, para que eles escolham a universidade privada e lucrativa para ver se elas melhoram de nível. Ou cobrar dos alunos ricos das universidades boas, para ver se, por causa disso, eles escolhem voluntariamente a universidade privada e lucrativa que não ensina direito. Mesmo assim, as boas universidades privadas não darão lucro.
Muitas coisas boas não dão lucro. A Vale do Rio Doce, por exemplo, é acusada de pagar dividendos de apenas 2%. Mas foi um investimento que rendeu mais ou menos 10% ao ano durante 55 anos: o governo deve ter investido US$ 50 milhões ou US$ 100 milhões na empresa e agora vai vendê-la por US$ 10 bilhões.
Construiu portos em regiões economicamente vazias, estradas de ferro, florestas e outras coisas que não tinham mercado consumidor e que eram muito importantes para o país, mas não davam lucro nem podiam ser cobradas. Agora, vai ser vendida.
A globalização é uma nova verdade, que apareceu há apenas 20 anos. Com essa nova verdade, temos destruído coisas brasileiras boas e mantido coisas ruins que, aqui no Brasil, parecem imutáveis.

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