São Paulo, segunda-feira, 17 de março de 1997
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Festival de Curitiba não é Edimburgo

NELSON DE SÁ
DA REPORTAGEM LOCAL

Vaiar um beijo. Não, Curitiba não é Edimburgo. "Opus Profundum" terminou ontem com um longo beijo, no telão ao fundo. Um beijo violento, "obsceno", de língua e saliva, mas envolvente, quase um beijo no público. E o público, ou parte dele, aliás, parte do público que não saiu no meio, vaiou. Gritou palavrões e coisas como "pára com isso". Para parar com o beijo, que ofendia. O beijo ofendia.
Na sequência, a banda e o elenco de atores e dançarinos retomaram a música, chamaram o público, carinhosamente, para dançar, fazer a festa como eles.
Foram alguns, poucos, e não há como um ator, um músico, depois de quase duas horas de entrega, num dos mais belos espetáculos da história do festival, esconder o espanto e uma expressão de tristeza pela recusa. Estava nos olhos deles, quase todos (um diretor, alguém que se esconda na coxia, pode até gostar de ser vaiado, ver glória na vaia, mas não alguém que está ali, em carne e suor).
Foi muito diferente da entrega de público que se viu em São Paulo, na primeira apresentação do espetáculo, na Jornada Sesc, em versão menor e ainda crua, sem o amadurecimento estético que se viu no final de semana, no todo formal teatro Guaíra.
A peça é um esforço corajoso de diálogo com o espírito e a arte dos anos de maior influência na cultura contemporânea brasileira, os 60. Corajoso porque acredita, apesar de afirmar explicitamente o contrário, que existe o novo. Expõe o novo, em contraposição e soma.
Leva à cena o funk, o rap e a cultura de comunidade, fenômenos de significado nas inviáveis São Paulo e Rio dos anos 90, mas não só o rap e o funk, e não só São Paulo e Rio; também a "street dance", o pernambucano Chico Science, lembrado delicadamente com uma música e a quem o espetáculo é dedicado.
Faz conversarem a poesia do rap e outras músicas, não temendo o romantismo, com a poesia do palco, reanimando o teatro e fazendo com que deixe o gueto em que está, em especial no Brasil, para reencontrar a realidade.
Em muitos sentidos, "Opus Profundum" (um título que é uma auto-ironia, é a contradição que se mostra o contrário, diante do barroco tecnológico presente no palco) é espetáculo único, tão diverso que torna quase possível acreditar estar diante de outra chance de presenciar o "novo".
Dionisio Neto, autor e diretor, Eugênio Lima, músico, e as dezenas de artistas parecem seguir uma intuição sem restrição de maior significado, uma antena sem "v-chip", recriação e criação em fluxo, em jorro que aceita e abraça tudo, que ataca e se apaixona pelo que ataca.
Recorre à arte gráfica por computador, mas ao vivo, uma instalação integrada ao teatro, parte da ação, em ação. "Star Wars" renasce nos EUA, ainda nem chegou aqui e já está no palco, com a imagem de Darth Vader. O que poderia ser mais contemporaneamente kitsch é enfrentado sem amarra. A TV paga está lá. Também a mídia, na acusação de que a "imprensa deturpa".
Pasquale, o monólogo de Renata Jesion, que cresceu de modo expressivo, no humor, no ritmo, desde a apresentação em São Paulo, ecoa Beavis and Butt-head. Uma tela gigantesca ao fundo, do beijo, da arte por computador, lembra Piscator.
A multimídia de "Opus Profundum" acumula camadas, coisas acontecem entrecruzando-se sem linearidade clara, como na própria construção dos diálogos. Um barroquismo que remete ao "Rei da Vela", assim como a musicalidade remete a "Roda Viva", referências dos anos 60.
Sem linearidade, o espetáculo tem um tema a dar linha ao espetáculo. É a grande metrópole, nas palavras do programa, "solidão e tecnologia, medo e futuro". Mais do que um tema, é uma moldura para formas e conteúdo misturarem-se no palco.
Em referências cifradas ao próprio Dionisio Neto, a peça apresenta três personagens urbanos, um "fotógrafo podrera", um "ator de fama internacional", e um vai-saber-o-quê, feito pelo próprio autor, em interpretação fulgurante: tomado, sensual, alegre, agressivo.
É o melhor dos três solilóquios, como já havia revelado Vanusa Ferlim, que fez o papel na apresentação paulistana, e ampliou Dionisio Neto agora.
Se de um lado cresceu a integração música-teatro, de outro, como contraponto, vale registrar que perdeu campo a "street dance", antes tão presente, aqui sufocada pelas demais artes em cena e até por falta de iluminação.

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