São Paulo, terça-feira, 18 de março de 1997
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'Romeu e Julieta' revive em feira

NELSON DE SÁ
DO ENVIADO ESPECIAL A CURITIBA

Ano passado, quando Ariano Suassuna leu "A História do Amor de Romeu e Julieta" no teatro Brincante, em "aula-espetáculo" sobre a tragédia, a peça não se revelou. O autor, que divide com Plínio Marcos o posto de maior dramaturgo brasileiro vivo, vinha cansado de uma turnê pelo sul do Brasil, em nova campanha pela valorização da cultura popular, e em lançamento do movimento Romançal, que retoma o Armorial.
Também a apresentação em Recife, já na montagem de Romero de Andrade Lima, sobrinho de Ariano, não alcançou o que prometia, no texto. Segundo relatos diversos, enfrentou problemas de iluminação e da impropriedade do palco italiano.
Mas em Curitiba, domingo à noite, com um elenco em parte amador, "Romeu e Julieta", na adaptação de Ariano Suassuna para um poema de cordel que havia encontrado quatro décadas antes, surgiu afinal em toda a sua paixão e arte.
O palco foi uma grande plataforma no Memorial da Cidade, com uma iluminação ainda de gambiarras e velas, mas bem realizada. Sobretudo, o que se teve foi não uma ambiência de teatro, mas, como no local de descoberta do cordel, uma feira.
Crianças penduradas em janelas, outros espectadores ocupando inteiramente os dois andares de uma escadaria, outros ainda amontoando-se, sentados, em pé, diante do "palco". Dificuldade de visão e audição, barulhos, conversas, bebês engatinhando na multidão, crianças batendo palmas no meio, gritando.
O sotaque carregado do elenco ajudou a tornar ainda mais singular a experiência. E a peça ganhou forma. Era a incorporação do sonho Armorial ou Romançal ou Arraial (o próximo passo, segundo Ariano), pelo menos para os olhos sulistas, extasiados diante do espetáculo, aplaudindo com arrebatamento no final.
Um teatro "de verdade", sem as marcas da exigência comercial, urbana, do universo da mídia virtual.
Aramis Trindade fez um Quaderna, o narrador, uma "imitação de Ariano Suassuna", como se descreveu no final, com o humor e a alegria do próprio autor.
Engraçado, mas também moralista, com os jeitos, a magreza, a voz surda do próprio. (Um ator profissional, é bom registrar, que levou o prêmio de melhor ator coadjuvante no Festival de Brasília, com o filme "O Baile Perfumado", ele foi dos poucos, para não dizer o único, com projeção de voz para ser ouvido.)
Julieta foi interpretada por uma Karina Buhr que, se não levou ao palco, na forma, a sua qualidade de integrante de uma banda de "mangue beat", levou no espírito. Foi jovial, apaixonada, desesperada, diante do amor por Romeu.
Também Romeu, Marcelo Valente, com abraços e beijos carinhosos, envolventes, protetores, mas também indefesos, fracos diante do poder maior que leva à tragédia. Como ressalva, o fato de raramente ter sido entendido; talvez coisa alguma, por quem não conhecesse o texto. Precisa de um trabalho de voz urgente.
Embalando a apresentação, uma feliz seleção de músicas entre religiosas e populares, no sentido do romantismo popular, seleção feita e em grande parte interpretada por Renata Mattar, no acordeão.
A encenação de Romero de Andrade Lima, o mesmo de "Auto da Paixão", um dos espetáculos capitais dos anos 90, reuniu uma mímica delicada, tocante, no abrir de portas, nas facadas mortais, no ato sexual, às já conhecidas procissões.
As bandeiras eram grandes pinturas em fundo branco e desenhos em preto ou cinza, obra inspirada de Dantas Suassuna, artista plástico filho de Ariano.

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