São Paulo, quarta-feira, 19 de março de 1997
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O nome da rosa e sua fragrância

SAID FARHAT

Qualquer dia, qualquer hora, você abre um jornal ou uma revista, ouve o rádio, liga a televisão e fica apto a atualizar-se no nosso "mondo cane".
Isto é, a receber a dieta diária de pequenas e grandes transgressões da lei, da moral, da ética, do amor à vida (própria e dos outros), do respeito à verdade. Enfim: sete dias por semana, o retrato em cores pastel, ou em tintas fortes, da nossa convivência mais ou menos tranquila com a fraude.
Uma hora é a pequena propina dada ao guarda de trânsito, para evitar a multa à qual fazemos jus pela violação de uma ou várias regras de trânsito. Ao lado, o grande suborno: zilhões dados a esta ou aquela autoridade para ganhar uma concorrência ou "livrar a cara" de multa maior, construir onde não é permitido ou fora das regras de zoneamento.
Na página seguinte, o estudante que frauda seu documento de identidade para fazer o exame vestibular e entrar numa faculdade.
Em outra, a própria escola "enfeita" as contas, para justificar mensalidades mais altas aos pais dos seus alunos. Mais adiante, os milhões de títulos públicos -constitucional e legalmente destinados a pagar "precatórios" judiciais- desviados para outros fins, com prejuízo do erário, por governadores e prefeitos.
Para não dizer que não falo de "rosas", há as fraudes contra a Previdência, em centenas de milhões de dólares -quantia suficiente para provocar a descrença do juiz que, em Miami, teve de apreciar o caso. "Como" -teria perguntado- "pode alguém roubar mais de US$ 180 milhões do governo e ninguém perceber?"
Depois vêm aquelas fraudes somente possíveis no Brasil, de tão alto valor que são contadas em unidades de "barings" -em referência ao escândalo mundial da falência do banco Barings, com rombo de "apenas" US$ 1,5 bilhão, até então o maior do setor.
Aqui, donos, diretores e controladores de bancos nacionais fraudam na ordem de vários "barings" e continuam por aí, lampeiros e sem preocupações aparentes. No fim, o Tesouro Nacional, isto é, o dinheirinho dos impostos de todos nós, pagará a conta. E ficará por isso mesmo.
Isso tudo sem falar na fraude diária dos preços de compra e venda de imóveis, na qual são cúmplices o vendedor, o comprador e o corretor. Diz-me um amigo especialista que não se passa escritura de um só imóvel, no Brasil, entre pessoas físicas, pelo preço real de compra e venda. Todos alimentam monumental movimento de "caixa-dois".
Nossa atitude em relação à fraude é peculiarmente brasileira: Não a achamos tão grave assim. Afinal, somos todos perdulários e o governo é o pior. Ou então desqualificamos as fraudes, segundo seu gênero, espécie e, mais ainda, quem as pratica. Pessoas simpáticas são logo perdoadas. Ninguém investe contra os "socialites" e os verdadeiramente ricos, com retrato nas revistas.
E, se a fraude for grande, grande mesmo -daquelas que afrontam a pobreza da maioria e são tão "enroladas" que desafiam o entendimento até mesmo dos especialistas-, então, todos parecemos conformar-nos: o Brasil é assim mesmo.
Não é. Tal como o poema de Shakespeare diz que uma rosa é uma rosa e com qualquer nome teria o mesmo perfume, uma fraude é uma fraude, é uma fraude. E seu mau cheiro é igual, independentemente de quem a pratica ou do seu valor material. Nem vale culpar os encarregados de vigiar. Sobretudo quando a fraude é feita com a intenção de evitar que os vigilantes a descubram -e são, frequentemente, suas primeiras vítimas.
Nesses casos, os fraudadores abrigam-se à sombra de largo e espesso manto de cumplicidade, premeditação e desejo consciente de delinquir. Apoiados na certeza de impunidade, como até aqui tem acontecido invariavelmente no Brasil. Procura-se, sempre, alguém a quem atribuir a culpa de tudo.
Qual a lição a tirar daí? Leis existem. Se não tão rigorosas quanto desejável, os crimes estão no Código Penal. E nas leis que regem as atividades econômicas e os setores cuja atividade é essencialmente fiduciária; isto é, cujos agentes lidam com o dinheiro do público, sob cláusula de boa-fé.
Que falta, então? Faltam punições exemplares. Suficientemente pesadas -e rápidas, depois da prova e defesa- para desestimular novas fraudes. Pegar os pequenos infratores, sim -do botequim da esquina à empresa que vende sem nota fiscal; mas também os fraudadores de colarinho branco e gravata preta, que ostentam soberbas mansões cujo preço, por si só, supera sua capacidade financeira declarada.
Prender os que nos "batem" a carteira na rua; mas também os barões da roubalheira, que nos furtam na requintada elegância e no luxo dos gabinetes isolados -do tempo, pelo ar condicionado; e das garras da lei, pela força do dinheiro e do prestígio.
Afinal, como a rosa, fraude é fraude. E, seja qual for, cheira mal. Ao contrário da rosa.

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