São Paulo, domingo, 23 de março de 1997
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Só custa 30 sacas de café

PAULO PRADO

A cerimônia da entrega ao Museu Paulista da carta autógrafa do padre Anchieta -adquirida em Londres por uma subscrição angariada pelo quinzenário "Terra Roxa e Outras Terras"- é um pequeno acontecimento que encerra diversas significações de grande alcance.
Esta carta, como se a tivessem posta no correio, levou 347 anos a peregrinar pelo mundo a fora até voltar aos céus e terra de onde partira. Este largo período da história de São Paulo é assinalado por uma formidável transformação que é a que medeia entre as palhoças da vila piratiningana e o próprio palácio em que hoje estamos. Perto de quatro séculos foram necessários para a elaboração desse milagre e, como numa parábola, a lição do milagre é uma lição de humildade e confiança. É um lugar comum dizer-se que o tempo só respeita aquilo que é feito com o seu concurso. A Companhia de Jesus soube construir com solidez a "paupérrima e estreitíssima casinha" em que nestes campos se disse a primeira missa. Revoltas, perseguições, interesses contrariados, mal-entendidos, a tudo resistiu: tinham-na edificado em dura pedra, como a própria igreja. Os séculos passaram. É hoje justo que São Paulo, próspera, cheia de vida, como a descortinamos desta mesma janela, e ataviada ingenuamente com o incerto gosto de uma nova-rica, venha pagar a dívida de gratidão contraída para com um dos fundadores da sua grandeza. E assim foi adquirido e é agora entregue ao patrimônio da cidade o documento venerável.
Foi comprado simbolicamente com 30 sacas de café. Um crítico fluminense escreveu que exclamáramos com melancolia, desanimados diante do preço exigido pelo livreiro de Londres: custa 30 sacas de café!... Engano. Gritamos todos, alegremente, como descobrimos um tesouro: só custa 30 sacas de café!
Sabíamos que a semente do jesuíta tinha frutificado esplendidamente em mil milhões de cafeeiros espalhados nas 25 mil fazendas de São Paulo. Com um insignificante esforço dessa força que se ignora a si mesma e que é tudo e nada é, poderíamos encher de preciosidades, como em armazéns ou tulhas, todas as salas deste edifício, para aqui transportando os documentos da Torre do Tombo, de Évora, de Simancas de Sevilha, e mais os inéditos desaparecidos do padre Manoel de Moraes, de frei Vicente, de Pedro Taques, de frei Gaspar, de tantos outros, escondidos nos arquivos e nas bibliotecas da Europa. Por enquanto, só nos bastaram, para a carta de Anchieta, 30 sacas de café. Em cinco dias estava ela comprada, pelo telégrafo, à paulista.
Esta modesta cerimônia é também uma homenagem do presente ao passado, as más línguas dirão talvez do "futuro" ao passado.
O pequeno grupo que redige a revista "Terra Roxa e Outras Terras" é a vanguarda do espírito moderno brasileiro. Os rapazes que o compõem passaram, como é preciso, por um período heróico em que não lhes faltaram apodos e injúrias. Período da incompreensão, mundial e histórico. Hoje já começam a ser quase consagrados e dentro em breve serão eles os clássicos deste minuto vertiginoso.
Se este Monumento fosse um museu de arte eu aconselharia aos modernistas de São Paulo que fugissem dele como da peste. Os chamados "Templos da Arte" são perigosos e funestos. A entrada dos museus artísticos devia ser proibida aos menores de 40 anos, idade já serena em que não se sabe mais imitar. Para os moços a lição está no dia radioso de lá fora, e não mais nas Venezas cor-de-rosa, nos Fontainebleaus outonais, nas Brugges defuntíssimas. Tranquilizemo-nos, porém; neste museu só há, empalhados, bichos e borboletas. Uma ou outra manifestação artística, isolada, torna-se sem perigo no ambiente naftalizado. Esse museu é sobretudo o museu do nosso passado paulista, ainda palpitante, ainda com o calor e o interesse da vida de outrora. Seria próprio de uma criança (já o disse Cícero numa frase a ser aqui gravada em latim e em letras de ouro), seria oupança. A única vantagem para o Tesouro é a valorização patrimonial dos acervos. Mas essa valorização permanecerá um perfume abstrato enquanto o patrimônio não for monetizado por meio da privatização.
A discussão na Câmara demonstrou quão lenta é a conversão brasileira do ufanismo ideológico para o pragmatismo econômico. Duas bizarrias vieram à tona nos debates. O art. 63, que mantém a Petrobrás estatizada, contém um parágrafo que impede os acionistas preferenciais de exigirem o direito de voto, caso a empresa deixe de distribuir dividendos por três anos consecutivos. Violando nosso direito societário, as ações preferenciais d

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