São Paulo, domingo, 23 de março de 1997
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Don Tabaco e seu Açúcar

PETER BURKE
ESPECIAL PARA FOLHA

"Contrapunto Cubano del Tabaco y del Azúcar" é o título de um livro notável publicado em 1940 pelo sociólogo cubano Fernando Ortiz. O livro é organizado na forma de uma série de oposições, à maneira das batalhas entre Carnaval e Quaresma ou entre água e vinho, tão típicas da literatura alegórica da Idade Média tardia. Um exemplo: o tabaco é apolíneo, o açúcar é dionisíaco; o tabaco é negro, o açúcar é branco. Mas o fito desse contraponto é, na verdade, apontar com ênfase e erudição para os efeitos sociais e culturais, tão profundos quanto opostos, do cultivo dessas duas plantas.
Para Ortiz, o açúcar está ligado ao cultivo extensivo, à força, ao trabalho coletivo, ao interior, à escravidão, ao passo que o tabaco está estreitamente relacionado ao cultivo extensivo, à inteligência, ao trabalho individual, à cidade e à liberdade. Um outro exemplo: a fábrica de tabaco era um lugar onde os trabalhadores podiam ouvir a leitura de um livro -como num refeitório medieval- ou discutir idéias políticas. Por seu refinamento literário, como pela originalidade de suas conclusões, o ensaio de Ortiz merece comparação com um livro publicado no Brasil sete anos antes, em 1933: "Casa Grande e Senzala", de Gilberto Freyre.
Minha intenção, neste artigo, não é a de apoiar ou criticar os argumentos deste livro notável, que deveria ser mais conhecido internacionalmente. Eu gostaria de fazer algo assim como um contraponto (para usar a linguagem musical de Ortiz), uma comparação contrastiva entre don Fernando e seu Gilberto. Seria simplista assimilar don Fernando, fumante inveterado, ao tabaco, e seu Gilberto, cuja paixão por doces era notória, ao açúcar; mas há outros contrastes entre os dois estudiosos que valeria a pena explorar.
Comecemos pelas semelhanças. Os dois homens pertenceram mais ou menos à mesma geração: don Fernando (nascido em 1881) era 19 anos mais velho. Ambos tinham um amplo espectro de interesses, com centro na sociologia, na antropologia e na história. Ambos deram mostras de intenso apego às suas culturas, nas quais tinham suas raízes e que conheciam profundamente. Ambos interessaram-se pela vida cotidiana ou, por exemplo, pela história social do corpo. Assim como Freyre reconstruiu a aparência física da comunidade negra a partir de cartazes descrevendo escravos foragidos, Ortiz reconstruiu carinhosamente o andar balouçante característico dos negros curros, os jovens e vaidosos gângsteres negros de Havana. Os dois estudaram festivais -e, curiosamente, é don Fernando quem tem mais a dizer sobre o Carnaval. Ambos escreveram prazenteiramente sobre a história da comida: assim como Freyre dedicou um estudo aos doces pernambucanos, Ortiz escreveu um livro sobre "La Cocina Afrocubana". E os dois evocavam o passado com certa nostalgia. Mas Ortiz, apesar de ilhéu, não era insular, assim como Freyre, posto que regionalista, não era um provinciano.
Os dois homens podem ser vistos como antropólogos "reflexivos" (nos termos de Pierre Bourdieu), abordando seus territórios nativos a partir de uma perspectiva "global" (desta vez nos termos de Fernand Braudel), estimulados por seus estudos no exterior -um nos Estados Unidos, o outro na Espanha. E os dois autores foram estilistas notáveis, que gostavam de apresentar suas obras como "ensaios" e adoravam metáforas sexuais rebuscadas. Ambos combinaram um amor quase de antiquário pelo detalhe histórico e um gosto marcado pela teoria social. Ambos interessaram-se por Marx sem serem marxistas -o mesmo acontecendo com Freud. Um foi aluno do grande antropólogo Franz Boas, o outro foi amigo do igualmente grande Bronislaw Malinowski. Ambos criticaram a noção de raça e dedicaram boa parte de suas vidas ao estudo da interação de culturas -fosse nos termos de uma "hibridização" ou de uma "transculturação".
Passemos agora aos contrastes entre os dois estudiosos. Don Fernando era um liberal, com uma pitada de anticlericalismo, e não parece ter tido dificuldades em sua velhice para se adaptar ao regime de Castro (morreu em 1969). Seu Gilberto teve laivos de radicalismo em sua juventude, mas foi se tornando mais e mais conservador. Ortiz teve mais simpatia pelo marxismo do que Freyre e ao menos alguns dos seus temas favoritos eram de inspiração marxista, tais como capitalismo, imperialismo e formação da consciência de classe do proletariado. Ambos tinham vasta cultura européia (sendo a de Freyre, provavelmente, mais rica), mas enquanto seu Gilberto estava sobretudo interessado na França e na Inglaterra, Don Fernando tinha os olhos voltados para a Espanha e a Itália (quando jovem, foi discípulo do criminologista italiano Cesare Lombroso).
Ambos estudaram a civilização do açúcar, mas o verdadeiro entusiasmo de don Fernando dirigia-se à cultura do tabaco. Ele parece não ter tido o olhar aguçado de seu Gilberto para o significado social e cultural da casa e da mobília -das redes aos banheiros. Por outro lado, ele tinha um conhecimento muito mais profundo e detalhado de música, domínio em que era capaz de falar sobre a hibridização cultural com a segurança de um etnomusicólogo. Ao contrário de seu Gilberto, não tinha muita coisa a dizer sobre a família e a vida sexual; em compensação, sabia muito mais sobre linguagem. Freyre também era cheio de intuições na área que hoje se chama sociolinguística, mas Ortiz foi mais além nesse domínio extremamente importante: a fim de identificar os elementos africanos na cultura cubana, aprendeu várias línguas africanas.
Como estes dois estudiosos, que aparentemente jamais se encontraram (embora soubessem da existência um do outro), teriam estudado a cultura alheia? É tão fácil quanto estimulante imaginar o que don Fernando teria escrito sobre o samba. É tão difícil quanto fascinante tentar adivinhar o que seu Gilberto teria escolhido descrever em Cuba, à falta do sobrado, da senzala e da casa-grande.

Tradução de Samuel Titan Jr.

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