São Paulo, domingo, 23 de março de 1997
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'Visto o manto dos gigantes', diz Dafoe

JEANNE WOLF
ESPECIAL PARA A FOLHA, EM LOS ANGELES

Willem Dafoe é perfeitamente cortês e charmoso, mas mesmo em uma conversa casual seu sorriso dentuço e a risadinha ameaçadora indicam que há algo obscuro e imprevisível por trás de seu exterior cordial. Essa qualidade explodiu nas telas em retratos intensos e originais de personagens que ficam na memória -de Jesus em "A Última Tentação de Cristo" ao torturado veterano do Vietnã de "Nascido em Quatro de Julho".
Dafoe acrescenta outro triunfo à sua lista com "O Paciente Inglês", baseado no romance best-seller de Michael Ondaatje, que ele co-estrela com Ralph Fiennes, Kristin Scott Thomas e Juliette Binoche.
Dafoe é Caravaggio, um antigo ladrão transformado em espião, que aparece em um monastério da Toscana, no final da Segunda Guerra Mundial. Lá, uma jovem enfermeira canadense está cuidando de um homem seriamente queimado, de passado misterioso -o "paciente inglês" do título- e, à medida que a trama se desenrola, cada um dos personagens revive os acontecimentos passados que os reuniram e que por fim terminarão por separá-los quando a verdadeira identidade do paciente inglês for revelada.
O ator, indicado para o Oscar, é brilhante como o sombrio e torturado ex-ladrão que assume um interesse decidido em descobrir a identidade do paciente inglês. Mas, ironicamente, Dafoe duvidava que fosse a pessoa certa para o papel. "Eu tinha lido o livro e tinha uma imagem de Caravaggio na mente", diz. "Não estava certo de que me via interpretando o papel. Mas acabei por experimentá-lo -como se experimenta roupas- e ele pareceu cair perfeitamente para mim."
Rindo da idéia de que a inquietação, sua marca registrada, seria perfeita para Caravaggio, ele diz: "Todo mundo aplica esses rótulos a mim -'perigoso', 'intenso'. Na vida real, acredito realmente que eu seja mais amistoso e temente a Deus do que os personagens que interpreto".
Mesmo que Dafoe se tenha tornado de certa forma legendário pela total imersão em todos os papéis que representa, incluindo o presente, ele se mostra ansioso por negar o mito de que esse envolvimento intenso é permanente.
"Eu entro em ação quando a câmera começa a rodar", sorri. "Quando ela pára, eu paro. Não tento ser ninguém além de mim mesmo, mesmo que eu não consiga me desligar completamente. Se é preciso fazer alguma coisa emocionalmente muito intensa, eu provavelmente vou estar contando piadas antes da filmagem."
Para Dafoe, um dos maiores desafios ao se preparar para interpretar Caravaggio foi aprender a simular a perda de seus dedões -já que o personagem teve as pontas dos dedos arrancadas em um interrogatório nazista.
"Suas mãos tornam-se quase inúteis. É realmente difícil apanhar qualquer coisa", diz. "Tornei-me até mesmo capaz de enrolar um cigarro. Infelizmente, não tive a chance de mostrar minha destreza no filme."
Fora das telas, o ator, de 41 anos, mora há muito tempo com Elizabeth LeCompte, 11 anos mais velha. Embora desconhecida do público, LeCompte é a diretora do elogiado grupo experimental de teatro nova-iorquino Wooster, que vem trabalhando em cidades de todo o mundo.
Jack, o filho de Dafoe e LeCompte, que tem 16 anos, cresceu acompanhando o pai a estúdios de filmagem do mundo inteiro. Mas Willem se orgulha do fato de seu filho ser um adolescente normal.
"Jack sabe que sou um astro de cinema, mas é capaz de aceitar. Ele não baseia sua identidade em mim, o que é miraculoso."
"Eis um exemplo perfeito: Jack estava em um avião e foi transferido para a primeira classe porque descobriram que era meu filho. A aeromoça foi até ele e perguntou: 'Você está na primeira classe, o que seu pai faz?'. Jack respondeu: 'Ele é ator'. A aeromoça replicou: 'Será que o conheço?'. E Jack disse: 'Acho que não, ele trabalha com um pequeno grupo de teatro chamado Wooster Group'."
Dafoe subitamente fica pensativo ao considerar o desafio de conservar um pé no teatro com o Wooster Group, para o qual ele recentemente estrelou "The Hairy Ape", e o outro em filmes, entre os quais seu desempenho de alta visibilidade como vilão em "Speed 2", que deve estrear em breve.
"Ter seu bolo e comê-lo é uma frase que me vem à cabeça", suspira. "Outra é: quem faz tudo não faz nada bem. Quero dizer, você se preocupa, quando está concentrado no teatro, que seu trabalho em cinema sofra, e vice-versa."
A despeito de seu sucesso na tela grande, Dafoe assumiu um compromisso importante com o Wooster Group, incluindo uma recente turnê internacional com uma apresentação em São Paulo.
"Viajamos o mundo inteiro porque na verdade não há espaço suficiente para o nosso tipo de teatro nos Estados Unidos", diz.
"Aqui, o lado econômico domina. Somos grandes demais para os pequenos teatros e pequenos demais para os grandes centros culturais. Além disso, em outros países há mais dinheiro disponível para apoiar o teatro", explica.
"Acredito que precisamos reinventar o teatro. Vivemos em um mundo onde pode-se falar ao telefone, assistir TV e estar na Internet ao mesmo tempo. Essa experiência intensa precisa ser expressa no teatro. Estamos tentando fazê-lo no Wooster Group."
Quanto a "Speed 2", que deve estrear na metade do ano, Willem Dafoe parece igualmente satisfeito por interpretar o vilão na sequência do enorme sucesso de "O Paciente Inglês".
"Estou vestindo o manto dos gigantes", ri. "Dennis Hopper era o malvado no primeiro filme. Não quero competir quando interpreto, mas isso é também um desafio. O roteiro é bom e estou me divertindo com o personagem. O filme pode carecer de complexidade, mas não tento analisar esse tipo de coisa. Acredite, se eu não achasse que era um bom papel, não o estaria interpretando."
"Acho que o que importa", acrescenta o ator com um sorriso, "é continuar evoluindo e me desenvolvendo. Algumas pessoas simplesmente param. Começam a viver nos louros. O interessante é que, quanto mais sucesso você tem, mais louros conquista."
Inclinando-se para a frente na cadeira, os olhos azul-acinzentados e penetrantes de Willem subitamente brilham.
"O sucesso é um verdadeiro problema porque tendemos a aprender mais com o fracasso. Sempre desconfio de qualquer pessoa que me diga que é um sucesso. Isso é estar morto. Quanto maiores forem seus sonhos e aspirações, maiores os desafios. Isso é viver."

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