São Paulo, segunda-feira, 24 de março de 1997
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Thomas morre e revive em Curitiba

NELSON DE SÁ
ENVIADO ESPECIAL A CURITIBA

Gerald Thomas decretou a sua morte há seis anos, na entrada dos anos 90. Foi quando Bete Coelho deixou a companhia e ele montou para e com ela "M.O.R.T.E." e "Fim de Jogo".
Pouco antes haviam caído o muro e três séculos (como quer o papa-ator-dramaturgo); no meio das apresentações morreu Tadeusz Kantor, do "teatro da morte" e de gigantesca influência sobre ele; e pouco depois Daniela Thomas deixaria a Cia. de Ópera Seca.
"Os Reis do Iê-Iê-Iê", que estreou sábado no festival de Curitiba, é a história se repetindo como farsa, farsa patética, até por isso engraçada.
O reencontro com Bete Coelho, com um abraço constrangedoramente sincero (sincero, afinal, por retratar a própria razão do "evento"), na primeira cena, e depois a morte nos braços dela, ele esforçando-se por atuar (canastrão, fingindo, fazendo-se de ferido), na cena final, foram ridiculamente emocionantes. Gerald Thomas e Bete Coelho em melodrama.
Mais cenas e é evidente, emocionantemente evidente, que "Um Processo" não mais. Os dois ensaiam, ele passa a dirigir Bete Coelho em cena, como tudo o mais, verdadeiramente falso ou vice-versa.
A peça começa, o que parece ou o que deveria ser a peça. Um coro canta, "ela te ama, sim, sim, sim", sem parar, sem parar, do refrão dos Beatles, "she loves you, yeah, yeah, yeah", como se fosse mentira, em tom de mentira e rancor.
Para tentar fazer algum sentido da trama, estão os quatro Beatles ou os quatro integrantes da Ópera Seca (que existe, ainda?), Bete Coelho, Gerald Thomas, Luiz Damasceno e Domingos Varela, num manicômio, cercados por médicos, enfermeiras e tensos agentes de segurança, esses de terno escuro e microfones de boca (os seguranças de Kennedy? cães de aluguel? os jornalistas da Folha?).
Um deles é Mark Chapman/Dionisio Neto, que anuncia desde logo a morte de John Lennon/Gerald Thomas.
Este a dizer, pela boca de seus maiores intérpretes, "o absoluto sou eu", mas "o tempo destrói" e "vale tudo, tudo vale nada". E Bete Coelho, "Gerald, em que é que você está pensando?... Ele só pensa em sacanagem." E Damasceno, "e essas pedras, representam o quê, lápides?"
O diretor/autor questiona a si mesmo, ao seu próprio teatro, pela boca da atriz: da "descoberta do eu como recurso artístico" ao fato de que "algo falhou, e falhou feio", e os códigos não podem ser mais "compartilhados". É quase "Um Processo", talvez quase a "M.O.R.T.E.", mas não mais.
Tudo não passa mesmo de uma "rebeliãozinha verbal", relata um dos agentes, à chefia. E tome "off" do diretor/autor, como clone do morto Kantor.
Mais e mais ridículo, Gerald Thomas desiste de "Um Processo", sua maior peça, histórica, museológica. Desiste "principalmente depois que ele levou aquele tombo" -o de Moisés, mas sobretudo aquele tombo dos ensaios que ganhou espaço na Folha, na "Veja" e na Rede Globo. Ridículo, pernas pro ar.
Entra Luís Frias, o presidente do Grupo Folha, e canta! Toca violão e canta, "exagerado" contido: "tire suas mãos de mim, eu não pertenço a você", e "não é me dominando assim que você vai me entender", e "será que é tudo isso em vão?" Clone de Renato Russo, voz de Renato Russo, o poeta morto por Aids.
Clones amontoados de John, Paul, Ringo, Renato Russo; e Mark Chapman.
Dionisio Neto volta à cena para "matar" outra vez Gerald Thomas, em clonagem até da própria morte. Tem o texto mais tocante, para ficar no campo da sinceridade, mais "verdadeiro", não à toa, dele mesmo, ainda que guiado por seu diretor/autor (não mais o "criador", porque o tempo deles, criados que foram por Antonin Artaud, morreu mesmo. Ao que tudo indica).
Grita Chapman/Dionisio, "se Deus não existe, meus amigos, tudo é permitido", e corre a atirar em Lennon/Thomas, supostamente para salvá-lo de sua própria pieguice, aliás, bem expressa na peça. E ele morre melodramaticamente nos braços de Bete Coelho.
Mas talvez Deus exista, como o próprio teatro parece estar a descobrir. E a peça mente, porque Gerald Thomas não morre, é bem capaz de voltar, ano que vem; o "evento", aliás, pode prolongar-se em São Paulo, quem sabe ganhar uma temporada.
E Bete Coelho é linda. Luiz Damasceno é engraçado. Gerald Thomas é um pequeno gênio judeu, no palco, texto, mídia, do teatro brasileiro. Qualquer hora vai ter "Um Processo" remontado por algum Dionisio Neto, como outra coisa, como aconteceu e acontece com Richard Foreman, outro original seu.
Tantas mortes já deram o que tinham que dar. Eu não aguento mais: viva Gerald Thomas.

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