São Paulo, segunda-feira, 24 de março de 1997
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Clonagem, engenharia genética e ética

ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE

A "clonagem", produção assexuada de indivíduos geneticamente idênticos, foi obtida recentemente para certos mamíferos, inclusive primatas. Foi transplantado o complexo cromossômico de um embrião, mas, no caso de uma ovelha, o material genético transferido proveio de uma ovelha adulta.
Há pouco mais de duas décadas se vem fazendo a transferência do núcleo de células adultas para óvulos de anfíbios, pelo uso de técnicas essencialmente equivalentes àquelas que tiveram sucesso com mamíferos recentemente. Clones de vegetais são obtidos, por processos mais simples, desde a Antiguidade.
O que se obteve com a ovelha na Escócia, portanto, era absolutamente previsível, como também é de esperar que, em futuro não muito distante, a mesma técnica possa ser estendida à espécie "homo sapiens", pois seu núcleo celular não é significativamente mais complexo que o de um primata ou o de uma ovelha.
Por outro lado, os produtos finais, os indivíduos clonados, não são diferentes daqueles gerados, espontânea ou acidentalmente, no processo que resulta em gêmeos univitelinos (idênticos).
Todavia a "clonagem" de seres humanos implica numa escolha deliberada das qualidades que seriam privilegiadas pelo processo de duplicação. Não restam dúvidas de que a clonagem contém um potencial de melhoria biológica das espécies sem alterá-las, mas quem escolheria as qualidades a serem reforçadas? Essa é a dúvida mais relevante que a clonagem humana levanta. Estaríamos preparados para elaborar um código de ética ou uma legislação relativa à reprodução assexuada humana?
A enorme reação provocada em meios tão distintos da sociedade em todo o planeta pelo sucesso da clonagem de mamíferos já constitui, em si, um elemento de apreensão.
Aparentemente predomina um impulso atávico, primevo, de rejeição a tudo que assemelhe uma pretensão do homem à criação. Essa atitude instintiva, arcaica, se manifesta em praticamente todas as lendas e religiões ocidentais. De Prometeu e Adão a Frankenstein, são punidos aqueles que imitam os deuses. Criar é prerrogativa dos deuses, sendo o homem sua maior criação.
É, portanto, necessário, para elaborar uma ética ou um código de conduta, livrarmo-nos de nossos temores atávicos cristalizados em religiões, em superstições e preconceitos culturais pseudo-históricos.
Em segundo lugar, não podemos esquecer que a ética, ou filosofia moral, é uma disciplina prática. Sua elaboração é progressiva. Ela é construída a partir da observação e da experiência. Além do mais, a elaboração de códigos de conduta tem sido, antes e depois de Platão, guiada pelo princípio enunciado pelo filósofo em suas "Leis", cap. 11: "(...) e que eu tenha o bom senso e faça aos demais como desejo que façam comigo".
Ora, não há como aplicar esse preceito à biotecnologia moderna. Além do mais, o homem ainda não tem qualquer vivência com a clonagem de espécies cujo comportamento encontre algum paralelo com aquele do homem.
Uma última advertência seria quanto aos cuidados para que um código de conduta para a clonagem não se estenda, inadvertida ou intencionalmente, à área da engenharia genética.
Enquanto a clonagem transfere o material genético sem nele interferir, sendo este seu objetivo, as técnicas de engenharia genética atuam diretamente na estrutura cromossômica, substituindo, alterando genes. É esta última uma intervenção, portanto, muito mais profunda na natureza.
A clonagem produz indivíduos idênticos à matriz original. A engenharia genética, ao contrário, altera a identidade genética do seu objeto, podendo produzir, inclusive, uma nova espécie. Essa técnica também encontra um paralelo na natureza, a mutação, processo provocado ou espontâneo, que é o responsável pela variação das espécies e pela evolução.
A engenharia genética vem sendo analisada, e algumas prescrições provisórias já existem para regulamentá-la. Seria conveniente que a mesma atitude de observação e análise fosse adotada para a clonagem de animais superiores.

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