São Paulo, sexta-feira, 28 de março de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O clone, um crime perfeito

JEAN BAUDRILLARD
DO "LIBÉRATION"

Decididamente, o mundo animal ainda não parou de nos trazer surpresas. Depois da vaca louca, a ovelha clonada. Crazy Cow e Baby Dolly. E não é por puro acaso que as duas, juntas, desenham o tema astral deste final de século. Vamos poder clonar mais e mais ovelhas e, assim, fabricar mais e mais rações que vão alimentar mais e mais vacas loucas.
Mas a analogia vai mais longe: a própria clonagem é uma forma de epidemia, de contágio, de metástase da espécie tomada pela reprodução idêntica e pela proliferação ao infinito, para além do sexo e da morte. O acontecimento mais importante consiste na aniquilação da reprodução sexuada e, consequentemente, de qualquer diferenciação e destino individual e único do ser vivente.
Usando das vias paradoxais da ciência e do progresso, estamos pura e simplesmente anulando a maior revolução no reino dos seres vivos -a passagem da multiplicação indiferenciada, de protozoários e bactérias, da imortalidade dos seres monocelulares, à reprodução sexuada e a morte imprevisível de todo ser individual-, em benefício da monotonia biológica do reino anterior, da perpetuação de uma vida "minimal" e indiferenciada, da qual, quem sabe, conservamos uma certa saudade.
Aquilo que Freud designava pelo nome de "pulsão da morte" nada mais era do que essa tentação vertiginosa de retornar, passando do lado de cá da morte, o anulamento na eterna repetição do Mesmo -a ontologia transformada em pura tautologia, a filogênese, em pura tautogênese.
Enquanto o ser vivente passou centenas de milhões de anos esforçando-se para arrancar o Mesmo do Mesmo, para se distanciar dessa espécie de incesto e entropia primitiva, nós estamos trabalhando em prol da desinformação da espécie, por meio da anulação das diferenças e da fabricação da entropia informada. É o fim da picada! É nessa revisão crucial de toda a evolução dos seres vivos que estamos engajados ao praticarmos a clonagem, que representa ao mesmo tempo o triunfo científico de uma espécie e sua morte, pela repetição de sua própria fórmula.
A multiplicação não é positiva senão em nosso sistema de acumulação. Na ordem simbólica, ela equivale a uma subtração. Se cinco homens puxam um corda, suas forças se somam. Por outro lado, se um indivíduo morre, sua morte é um acontecimento considerável, mas se mil indivíduos morrem a morte de cada um deles é mil vezes menos importante. No caso de gêmeos, cada um deles não passa, no fundo, de uma metade de um indivíduo, porque este se duplica. Se clonarmos ao infinito, o valor de cada um será igual a zero.
Isso já se tornou visível no registro do social, onde se encontra aquilo que o sistema produz e reproduz; são seres conformados, substituíveis entre eles, seres que já são mentalmente clonados.
No fundo essa história toda de clonagem não é nova; já temos a experiência viva dela em todos os campos, intelectuais, culturais, operacionais, sem contar com os do trabalho e da técnica, onde o sistema há muito tempo nos obriga a sermos clones de nós mesmos ou clones uns dos outros.
A clonagem, desenho automático de indivíduos prontos para consumo e sua identificação numa fórmula mínima (seu código mental e comportamental), já é realizada em grande escala. Os clones já estão aqui, os seres virtuais já estão aqui -somos todos replicantes! No sentido em que, como em "Blade Runner", já é praticamente impossível distinguir o comportamento propriamente humano de sua projeção sobre a tela, de sua duplicação na imagem e de suas próteses informáticas.
É verdade que, com a clonagem, estamos diante de uma prótese infinitamente mais sutil e artificial que qualquer prótese mecânica. Ao assumir o lugar de pai e mãe, o código genético se torna a verdadeira matriz universal, e o indivíduo passa a não ser mais do que a metástase cancerosa de sua fórmula básica. É essa a incrível violência da simulação genética.
Mas, no fundo, isso não passa da última fase de um processo que nossas técnicas modernas apenas vieram precipitar: aquele de uma falsificação ideal. É o crime perfeito, o trabalho de aniquilação do mundo, cuja morte nós, a partir de agora, teremos que lamentar.
É o contrário do Eterno Retorno (do Mesmo) segundo Nietzche. Este supõe que as coisas sejam parte de um encadeamento necessário e fatal que as ultrapassa. Nada disso acontece hoje, quando as coisas são tomadas numa contiguidade infinita e sem futuro. O Eterno Retorno é hoje o eterno retorno do infinitamente pequeno, do fractal, a repetição obsessiva de uma escala microscópica e desumana.
Não é mais a exaltação de uma vontade, nem a afirmação soberana de um acontecimento, de um porvir, e sua consagração por um sinal imutável, como dizia Nietzche, mas a recorrência viral dos microprocessos, ela própria inevitável, mas que nenhum sinal potente torna sensível à imaginação.
É por isso que os comitês de ética não vão conseguir mudar nada. Com todas as suas boas intenções, eles não passam de expressão de nossa consciência pesada diante do desenvolvimento irresistível e fundamentalmente imoral de nossas ciências, que nos trouxeram até aqui, e com a qual consentimos secretamente, ao mesmo tempo que nos permitimos o gozo moral do arrependimento.
Aliás, o clone pode aparecer -e essa é a vertente positiva da repetição- como paródia do original, como sua versão grotesca e irônica, do mesmo modo que Napoleão 3º foi, segundo Marx, a repetição grotesca de Napoleão 1º.
Pode-se imaginar a partir disso toda espécie de novos conflitos, como o futuro clone matando seu "pai", não para poder manter relações com sua mãe (o que, aliás, passa a ser impossível), mas para reencontrar seu status original e sua identidade exclusiva.
É a imagem da última cena de "Jurassic Park", em que os dinossauros vivos, todos clonados a partir de um DNA fóssil, irrompem no museu de dinossauros, ou ainda a revanche do original parodiado, desqualificado.
Em última análise, o que se torna o ser humano que é relegado por seu próprio clone e, assim, também passa a ser inútil? Uma reserva? Uma relíquia? Um fóssil? Um fetiche? Um objeto de arte? O conflito entre o original e sua cópia não está perto de terminar, nem aquele entre o real e o virtual.

Tradução de Clara Allain.

Texto Anterior: DJ EDU GANTOUS
Próximo Texto: Forman perverte imagem do 'pervertido' Flynt
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.