São Paulo, sexta-feira, 28 de março de 1997
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Clap, clap, clap, nós somos as matracas da Paixão

NINA HORTA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Descemos o morro do sítio em direção a Parati, num cair de tarde, quase noitinha. Chegamos à cidade, alegres, sem lenço nem documento, examinamos com cuidado uma loja nova de barcos em miniatura e continuamos caminho naquela sexta-feira de feriadão de Páscoa.
Homens de preto carregavam um andor, pisando desajeitados nas pedras irregulares da rua. Quase desequilibrada sobre os veludos roxos, a imagem da Mãe, enorme, em relação ao Filho. Vinha curvada sobre o corpo, branca, o olhar de cera opaco, cego.
A Mãe e o Filho eram projetados em sombras moventes, alongadas, nas fachadas velhas, para cima e para baixo, conforme o andar sem cadência e os tropeços dos carregadores.
Atrás do andor, as matracas choravam lato, clap, clap, clap, numa dor de dar medo.
Naquela hora, como numa iluminação entendemos tudo. Mas só naquela hora.
Como entender, lembrar, a todo dia e toda hora, se lá se acabaram os ritos, os jejuns, nada lembra mais nada, no estupor do trabalho, da casa, da rua?
Acontece que sempre fomos assim, sem-vergonhas, não é coisa de modernidade.
Quando Colombo chegou ao Novo Mundo, teve a maior dificuldade em juntar lé com lé, cré com cré. Tudo era diferente demais. Como a Lua e o Sol, dizia ele.
Os espanhóis que aportaram nas terras novavas também não sabiam como classificar as comidas para não fugir às regras do preceito. O que podiam comer para continuar seguindo à risca as convenções religiosas do jejum e da abstinência?
O que era carne, o que não era? O lagarto iguana, por exemplo. Carne ou peixe? O chocolate, comida ou bebida?
Santo Tomás já definira carne como tudo que vinha de animais de sangue quente que viviam e respiravam na terra, e os peixes, os não-carne, viviam na água e tinham o sangue frio.
Espanhóis botaram-se a observar o lagarto verde. Andava pelo chão, comia insetos, folhas, frutas e subia em árvores. Se a árvore estivesse perto de um rio e ele se lançasse a comer uma avezinha, muitas vezes caía n'água e nadava lindamente. Então, se nadava era peixe, e como peixe podia figurar na mesa quaresmal.
O caso do chocolate já era mais complicado. Tinha a maior cara de bebida mas era pura sustança e alimentava. Entraram quatro papas nas discussões através dos tempos. Em 1645, Thomás Hurtado publicou um tratado afirmando que cacau, água e pimenta não quebravam o jejum, mas cacau com leite, ovos e caldos eram pecado.
No século 18, a briga continuava. Os jesuítas que negociavam com cacau afirmavam que era bebida. Outras ordens discordavam.
Pasme, ainda em 1935 um carmelita descalço publicou uma tese sobre as regras eclesiásticas do jejum e da abstinência. Toda a bebida tomada para matar a sede e facilitar a digestão era permitida. Vinho, café, refrigerantes, licores, chá, tudo podia. Chocolate, não.
Comida, bebida, peixe, carne, pode, não pode, pecado venial, mortal, bacalhau, sexta sim, quarta não, quarta sim, sexta não. Clap, clap, clap, clap, nós somos as matracas da Paixão.

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