São Paulo, sexta-feira, 28 de março de 1997
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VERTIGEM

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DE CINEMA

"Um Corpo que Cai" ("Vertigo") tem quase tudo o que se pode pedir do cinema, seja qual for a cópia: amor e rancor, imaginação e desejo, verdade e mentira, obsessão e desejo, realismo e romantismo, memória e esquecimento.
Esta obra-prima, agora restaurada, chega um tanto prejudicada ao Brasil (leia texto nesta página).
Isso não afeta a história de Scottie, tira afastado por sofrer de medo de altura, a quem um amigo contrata para seguir sua mulher, Madeleine, supostamente insana. Scottie apaixona-se pela mulher. Quando ela morre, tentará fazer de Judy, garota parecida com ela, uma nova Madeleine.
Seja pelo restauro, seja pelas cópias novas, a imagem impressiona pela riqueza cromática. O som, remasterizado, dá mais relevo à música de Bernard Herrmann.
Mas "Vertigo", em cópia nova ou velha, em vídeo, até cortado pelos comerciais da TV, é fascinante.
É estranho que Hitchcock tivesse tantas reservas a seu respeito, tratando-o como um trabalho relativamente frustrado.
Talvez a frustração preceda o filme e venha de 1956, quando contratou Vera Miles. Era a atriz que Hitchcock queria transformar numa nova Grace Kelly. Sua primeira impressão sobre Vera foi a de uma mulher que se veste mal. "Ela naufraga sob as cores", comentou.
É em torno disso que gira a sequência central do filme: aquela em que Scottie (James Stewart) descobre na rua a vulgar Judy e trata de transformá-la num duplo de sua amada morta, Madeleine.
A pedra de toque da mudança de Judy em Madeleine é o vestuário. Judy também naufragava sob cores, como Vera Miles.
Hitchcock sofreu intensamente quando Vera Miles ficou grávida de Gordon Scott, "seu marido Tarzã", como o chamava, e se viu impossibilitada de fazer o filme.
A relação de Hitchcock com suas atrizes não é um dado secundário. Amou tortuosamente Ingrid Bergman, Grace Kelly, Tippi Hedren. Sentiu-se rejeitado por todas. Mas, segundo consta, nunca foi tão obsessivo com nenhuma delas quanto com Vera Miles. E ela o trocara pelo Tarzã do cinema.
O porquê de ele ter aceitado Kim Novak para o lugar de Miles é um mistério. Novak, de formas exuberantes, era o oposto da atriz hitchcockiana -nórdica, distante.
Seu primeiro desentendimento com Novak versou sobre os trajes, justamente. Ela achava que "perderia consistência", com os cabelos loiros e vestida com um tailleur cinza. Ora, era bem o que Hitchcock queria: uma figura ilusória, que tivesse saído de um sonho.
O roteirista Samuel Taylor fez o comentário definitivo sobre Novak: se ela fosse a atriz com que Hitchcock sonhava, o filme não teria dado tão certo.
E mais: assim como Hitchcock conseguiu "tirar a consistência" de Novak, a atriz criou uma Judy imensamente carnal. É improvável que Miles tivesse chegado a tanto.
Kim Novak talvez seja a pedra de toque desse filme perfeito: o roteiro, a luz, os cenários, os créditos, a música -tudo leva a um conjunto trágico, atormentadamente sinfônico, criado por um homem que nunca colocou de modo tão intenso suas fantasias e idéias sobre o amor, a mulher e a duplicidade dos seres em outro de seus filmes.
Mesmo os famosos beijos hitchcockianos -beijos que parecem assassinatos, já se disse- transmitem essa tensão entre vida e morte. No caso, o diretor apoiou-se na escultura "O Beijo", de Rodin, onde via as idéias de amor e danação.
Mas não esqueceu de introduzir algo de especificamente cinematográfico: o movimento, hoje clássico, que conjuga a zoom de aproximação ao travelling de recuo (quando Scottie experimenta a vertigem). Imagem assombrosa, que seu biógrafo Donald Spoto definiu como "o equivalente visual da soma de desejo e distância, da vontade e do medo de cair, da atração e da rejeição". "Um Corpo que Cai" é a vertigem do cinema.

Filme: Um Corpo que Cai
Produção: EUA, 1958
Direção: Alfred Hitchcock
Com: James Stewart, Kim Novak
Quando: a partir de hoje nos cines Espaço Unibanco/sala 2 e Cinearte 2

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