São Paulo, domingo, 30 de março de 1997
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"Just do it"

MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
EDITOR DE DOMINGO

Tem sido uma das preocupações expressas de Fernando Henrique Cardoso conferir respeitabilidade ao cargo presidencial: a miséria política e a informalidade brasileira encarregaram-se, ao longo dos anos, de cercar o presidente da República de tratamentos, para dizer o mínimo, pouco cerimoniosos.
Será difícil, contudo, alcançar o objetivo quando o próprio presidente dirige-se à sociedade de forma irônica e provocativa.
Foi o caso da dispensável expressão "neobobismo", utilizada por FHC para qualificar aqueles que criticam a inação governamental na área social.
Ora, num país com os índices de desigualdade que o Brasil carrega, qualquer crítica em relação às políticas sociais dos governos é insuficiente.
A dívida social do Estado e das elites que o têm (des)controlado é tamanha que as demandas por ações nessa área deveriam ser redobradas.
Não cabe ao presidente da República chamar críticos de bobos, muito menos os que procuram fiscalizar os gastos governamentais com políticas sociais. Ainda mais tratando-se de um homem, como FHC, com currículo que tangencia as causas populares.
Tivesse o governo um mínimo de criatividade e determinação para enfrentar as urgências sociais do país; tivesse uma ação clara, visível, evidente por si só nesse terreno, com certeza não precisaria recorrer a essa retórica chinfrim para defender-se. Não precisaria sequer defender-se.
Salta aos olhos de qualquer pessoa que não vive na clausura do poder -ou sob sua hipnose- a degradação por que passam populações inteiras de miseráveis no país, as péssimas condições da saúde pública, a decomposição da polícia, o crescimento dos índices de violência, o abandono da infância e a destruição ambiental.
Não adianta o governo dizer que o Real promoveu milhares ao consumo -muito bem, temos, agora, mais barracos com aparelho de som e geladeira. Parabéns.
É muito simpático e confortador ouvir dona Ruth Cardoso falar sobre os benefícios do Comunidade Solidária, mas todos sabemos que os desafios são muito maiores.
Se falta ao governo a imaginação necessária para enfrentá-los, seria de se esperar, ao menos, mais trabalho e vontade política.
O presidente e seus assessores não gozam, embora às vezes comportem-se como tal, de direitos divinos para ocupar seus cargos.
Estão lá por uma vontade da sociedade para fazer aquilo que a sociedade pretende que seja feito -e as promessas eleitorais enchiam cinco dedos de uma mão, lembra-se?
Cabe, nesse jogo, aos diversos setores, pressionarem pelo que querem ou acreditam que não está sendo realizado satisfatoriamente.
As coisas passam em Brasília como se tudo fosse acontecer por geração espontânea, tão logo a economia atinja os níveis internacionais de competitividade.
Ou seja, quando formos a Europa tudo estará muito bem.
Até lá, bobinhos, salve-se quem puder!
*
Os EUA continuam se superando em bizarrice. Todas as sociedades surtam, mas a americana surta "à la grande", de forma espetacular, como só eles sabem fazer.
O caso do suicídio coletivo na Califórnia é mais um exemplo.
Um registro lateral da tragédia: os suicidas calçavam todos tênis da marca Nike, a da seleção brasileira e do Ronaldinho. Bela marca, aliás, construída, entre outras coisas, com uma propaganda de primeiríssima qualidade.
Macabra ironia, portanto, a presença nos pés dos suicidas, especialmente quando se pensa no slogan da Nike: "Just do it".

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