São Paulo, domingo, 30 de março de 1997
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Hungria quer laços mais fortes com o Brasil

ARTHUR NESTROVSKI

ARTHUR NESTROVSKI; NELSON ASCHER
ENVIADO ESPECIAL A BUDAPESTE

Presidente húngaro, Árpád Gõncz, chega ao país esta semana com comitiva de empresários

Primeiro presidente democraticamente eleito na Hungria, em 1990, depois da derrocada do regime comunista, e reeleito para o cargo em 1995, Árpád Gõncz só ingressou profissionalmente na política em fins da década de 80, com mais de 60 anos. Esta semana, o presidente húngaro visita o Brasil.
Formado em direito, trabalhou numa variedade de funções depois de participar da resistência à ocupação nazista: foi soldador, encanador e engenheiro agrônomo antes de ser condenado à prisão por seu envolvimento na Revolução Húngara anti-soviética de 1956.
Na prisão, aprendeu inglês. Após receber anistia, em 1963, se tornou o mais renomado tradutor de literatura inglesa e americana para o húngaro, com mais de cem livros publicados. Traduziu, entre outros, John Updike, E. L. Doctorow e William Faulkner, além de escrever suas próprias peças e contos.
Foi por intermédio da União dos Escritores, da qual se tornou presidente em 1988, que ele acabou chegando ao Parlamento e, em seguida, à Presidência, pela Aliança dos Democratas Livres.
Pai de quatro filhos, avô de sete netos, o presidente Gõncz é uma das figuras mais benquistas da política centro-européia; um homem sereno, de fala suave, muito distante da retórica exaltada de outros políticos da região.
O líder da extrema direita, István Csurka, é um exemplo: em manifestação no dia 15 de março, data nacional da Hungria, reuniu mais de 50 mil pessoas para pregar contra a União Européia, a globalização, o governo liberal e, por implicação, os judeus e as minorias.
Diariamente o presidente trabalha numa das 691 salas do Parlamento neogótico, de 1902, que é uma das glórias turísticas de Budapeste, à beira do Danúbio. E foi lá, numa manhã chuvosa, que o presidente recebeu a Folha para esta entrevista exclusiva.
Embora fluente em inglês, o presidente ateve-se à norma diplomática de só dar entrevistas em húngaro; suas respostas foram traduzidas diretamente para o português pelo assessor de política externa, embaixador András Gulyás.
Folha - Qual o motivo de sua visita ao Brasil?
Árpád Gõncz - Será a terceira vez que viajo à América Latina. Na primeira, estive só de passagem pelo Brasil, em viagem ao Chile, Equador, Venezuela e Colômbia. Foi uma experiência extraordinária, mas naquela altura ainda não tinha consciência de que, para uma visita a essa região, era indispensável levar conosco empresários e homens de negócios. Estávamos, também, à espera da criação do Mercosul; e nosso processo de engajamento na União Européia estava em fase muito preliminar.
Participei, depois, da Eco-92, no Rio de Janeiro -o ponto de partida para a proteção do ambiente em nível mundial, embora não mais do que um ponto de partida.
Agora, estarão na minha comitiva 31 empresários e com eles poderemos manter conversações concretas, muito concretas, no Brasil. Outros destinos da viagem incluem o Paraguai (cujo presidente, Juan Carlos Wasmosy, é de origem húngara) e o México, também muito importante para nós, do ponto de vista econômico.
Folha - Como o sr. vê hoje as relações entre a Europa Central e a América Latina?
Gõncz - Na minha primeira visita aos países latino-americanos, ficou estabelecida, para mim, uma semelhança surpreendente na evolução política e social da América Latina e da Europa Central. Isto compreende-se pela passagem, em ambos os casos, de regimes ditatoriais à democracia. As circunstâncias econômico-sociais também me pareceram semelhantes.
Mas, como já disse, aquela visita criou expectativas que, naquela altura, eram difíceis de implementar. Desta vez, levo comigo não só membros do governo -com amplo conhecimento das questões a debater durante os encontros oficiais-, mas também empresários, decididos a avançar negócios concretos com o Brasil.
Gostaria de ressaltar, ainda, outro aspecto: em todos os países que vamos visitar há comunidades húngaras muito significativas. A comunidade no Brasil, por exemplo, destaca-se por sua importância, não só econômica, mas cultural e científica também.
Ademais, será uma viagem de reconhecimento por "novas terras". Nossos antepassados, os magiares, faziam essas incursões de reconhecimento a cavalo. Agora, vamos de avião. De outra modo seria temerário: nem os cavalos húngaros estariam dispostos.
Folha - O interesse da Hungria em integrar-se à União Européia é bem conhecido. Até que ponto já avançaram as negociações nesse sentido e que perfil teria uma Hungria "européia"?
Gõncz - Estabelecer um calendário exato é muito difícil. Mas quero sublinhar que estamos numa fase muito avançada das negociações. Provavelmente a Hungria estará na primeira leva de alargamentos da União.
Como no caso dos avanços do Mercosul, o que é preciso é tempo. Um dos objetivos dessa viagem é identificar as oportunidades que a Hungria terá de aprofundar suas relações comerciais com a América Latina, uma vez dentro da União Européia. Quanto a isso, poderá ter uma nova tarefa e uma nova importância a Câmara de Comércio Húngaro-Brasileira, onde tenho muitos amigos pessoais.
É de interesse nosso recolher resultados sobre o funcionamento de um mercado único, sobre o qual os países da sua região já têm alguma experiência. No nosso caso, isso será uma experiência inédita. De um lado, gostaríamos de aprender alguma coisa sobre as experiências políticas de funcionamento do mercado e, de outro, explorar e abrir novas possibilidades econômicas. E, em terceiro lugar, esperamos engajar o interesse das comunidades húngaras nos países latino-americanos, para que atuem como catalisadoras dessas relações internacionais.
Naturalmente, é preciso levar em conta as diferenças de dimensão. O Estado de São Paulo, sozinho, tem mais habitantes do que a Hungria inteira. Não estamos chegando como conquistadores...
Folha - E com relação à Otan? Há alguma chance de a Hungria ser incorporada no futuro próximo? A Rússia continua oferecendo resistência a essa idéia?
Gõncz - Temos confiança de que nossa adesão será confirmada na primeira rodada das negociações. As declarações da secretária de Estado dos EUA (Madeleine Albright) vão nesse sentido. Os laços já foram estabelecidos e sentimos grande confiança. Mas precisamos ter certa cautela em não anunciar nossa alegria antes da hora.
É preciso lembrar que a Hungria tem sete vizinhos. Minorias desses sete Estados vivem no território húngaro, e nós também temos grande número de húngaros nos países limítrofes. Quanto mais países dessa região puderem entrar na estrutura da Otan, maior será a estabilidade. Diria que a estabilidade nessa zona da Europa depende de duas âncoras: a Otan e a União Européia. Ao que parece, a primeira âncora a segurar nosso barco poderia ser a Otan.
Estamos ainda a caminho disso e só posso manifestar minhas esperanças. Mas tenho a sensação bem fundada de que a Hungria não constitui ameaça para ninguém; e especialmente não para a Rússia.
Folha - Para muitos de nós, no Brasil, o filme de István Szabó "Queridas Amigas" (1992) cristalizou a imagem da Hungria pós-comunista, com uma juventude cheia de talento lutando sem sucesso para encontrar um lugar na nova ordem. Que chance teriam as duas amigas hoje?
Gõncz - (risos). Não é fácil dar uma resposta... Cada filme, cada obra de arte tem pelo menos duas possibilidades de interpretação...
Szabó é um diretor extraordinário, se se pode dizer, é um fenômeno centro-europeu. Todos os seus filmes abordam a história dessa região do mundo. Muitos tentaram, mas ninguém conseguiu definir com exatidão o que é a Europa Central. Partindo do mínimo necessário, poderia dizer que se trata daquela área que, no passado, pertencia à monarquia austro-húngara, onde todos os banhos públicos eram pintados de verde e todas as guarnições de amarelo. "Entre a Rússia, ao leste, e a Alemanha, a oeste": outra definição comum. Mas é muito pouco.
Ao mesmo tempo, há uma forma inconfundível de pensar, uma forma de encarar e comportar-se na vida que é igual em Budapeste, Praga, Zagreb, Cracóvia e demais cidades da região.
Folha - De minha parte, aprendi isso lendo o escritor húngaro Gyõrgy Konrád.
Gõncz - (risos). Um centro-europeu absolutamente típico.
Folha - No Brasil, como no resto do mundo, têm sido noticiadas as atividades do Partido Justiça e Vida Húngara, comandado por uma figura, digamos, pitoresca: István Csurka, defendendo as bandeiras do nacionalismo, anti-semitismo e discriminação das minorias. Que papel tem a extrema-direita no cenário político húngaro atual?
Gõncz - Você tem toda a razão em dizer que Csurka é um personagem pitoresco... Na Hungria, como em outras nações pós-comunistas, coexistem muitos passados ao mesmo tempo. Não estaria exagerando muito ao afirmar que ele e outros políticos de atitude e posições semelhantes querem nos levar de volta à década de 30.
Seria prematuro prognosticar o que podem trazer as eleições de 98, mas já podemos testemunhar que os representantes desses diferentes passados devem aparecer largamente no cenário. A meu ver, porém, são como encraves sociais. E o fato de que alguém leve gente às ruas não significa que possa vencer eleições democráticas.
Diria também que a democracia húngara já é forte o bastante para permitir que seja quem for manifeste-se em público. O fato de o sr. Csurka ter recebido as autorizações para que pudesse fazer sua demonstração recente, durante as comemorações oficiais da Revolução de 1848, com a presença de dirigentes do governo, significa que a democracia húngara é suficientemente forte para aceitar esse tipo de comportamento.
Desde o surgimento do novo regime democrático, em 1990, não houve um só caso da polícia envergar equipamento de choque. Ninguém jamais foi atacado com cassetetes por estar na rua manifestando sua opinião. Eu seria o último a tolerar uma medida dessa.
Folha - O sr. mencionou, certa vez, que gostaria de aprender espanhol, para traduzir García Márquez, Vargas Llosa e Neruda.
Gõncz - Ah, gostaria. Estive com García Márquez, na Colômbia. Ele me disse que eu era o primeiro chefe de Estado com quem ele jamais pudera conversar, de igual para igual, um homem falando com outro. Até hoje sinto o maior orgulho por isso.
Folha - O sr. tem conseguido escrever alguma coisa de ficção?
Gõncz - É impossível. Mas gosto de escrever minhas próprias falas e discursos e acabo pensando nisso como um gênero literário.
Folha - Ditaduras, tiranias e burocracia sempre foram um grande estímulo à ironia literária. A Hungria pode se orgulhar de uma extraordinária escola de escritores irônicos, de Kosztolányi a Örkény, Konrad e Esterházy, mas o vigor literário, em larga medida, parece ter desaparecido, agora que as circunstâncias do país são tão diferentes. Novos romances oscilam entre a automutilação linguística e a paródia, cortejando a literatura média americana ou o romance policial. Estou sendo injusto?
Gõncz - Nos últimos 50 anos, os escritores nos países da Europa Central e do Leste assumiam também, de certa forma, um papel de profetas. Esse papel, agora, ficou diluído. Todo mundo tem o direito de dizer o que quiser.
Por cerca de 40 anos, os escritores aprenderam a escrever nas entrelinhas, e o leitor, também, sabia ler nas entrelinhas. Era uma espécie de código a decifrar. Mas só agora as obras feitas durante o período da ditadura estão sendo submetidas a um controle de qualidade. Muitas daquelas obras que, na época, saudávamos como obras-primas não se sustentam mais. Outras, que haviam passado despercebidas, agora revelam-se como de grande valor.
Não estou totalmente convencido de que a liberdade absoluta seja um grande estímulo à criação literária. Vencer resistências pode ser um bom desafio. Os assuntos íntimos, particulares, não levam a nenhuma grande obra -mas isso todo mundo sabe, mundo afora.
Num dos meus romances, publicado há tempo, havia uma frase, que gerou cartas para lá e para cá com meu editor por alguns anos. A frase era a seguinte: "Entre muitas verdades, a mais importante é a que foi perseguida". Quando William Styron (o romancista americano) visitou a Hungria, conversamos sobre essa frase. E ele me disse, com certa inveja: "Felizes de vocês, que moram num país onde o Estado tem tanto interesse na literatura que é capaz de manter correspondência sobre uma única frase!" E arrematou: "De minha parte, posso dizer qualquer coisa: ninguém está interessado". À sua maneira, estava dizendo uma grande verdade.

Arthur Nestrovski, professor de literatura na pós-graduação em Comunicação e Semiótica da PUC de São Paulo, autor de "Ironias da Modernidade" (Ática) e organizador de "Riverrun - Ensaios sobre James Joyce" (Imago), entre outros, viajou a convite da Lufthansa.

Colaborou Nelson Ascher

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