São Paulo, segunda-feira, 31 de março de 1997
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"Desesperança não é uma virtude"

FERNANDO ROSSETTI
DE NOVA YORK

Em entrevista sobre seu último livro, Paulo Freire, 76, falou da evolução de sua obra, de como vê a realidade atual do país, dos desafios que a educação brasileira enfrenta e da "tensa relação entre autoridade e liberdade".
A seguir, trechos da entrevista, concedida quinta-feira passada em Nova York, onde Freire está acertando os detalhes de um curso que ele dará a partir de setembro na Harvard University.
(FR)
*
OBRA - "O que há em mim é uma procura normal, não enferma, não neurótica, da coerência. Eu brigo muito para me manter respeitoso quando escrevo do que digo e quando digo do que escrevi.
Eu sei que uma das boas coisas que a gente pode fazer na vida é não ser quatro vezes quatro dezesseismente coerente. Porque é muito difícil e seria muito chato ser todo mundo coerente.
Mas há uma distância mínima que você tem que permitir para você incorrer em incoerências que ajudem você continuar a lutar por ela, pela coerência. Eu acho que isso tem um pouco no livro."

NEOLIBERALISMO - "Eu devo repetir que eu não sou economista. Falta a mim um instrumento com que eu pudesse brigar melhor.
Mas -e agora eu fico mais no campo da filosofia- eu recuso definitivamente uma das coisas que para mim estão embutidas no discurso neoliberal, eu recuso qualquer recado fatalista.
Essa ideologia diz, por exemplo, que não há outro caminho para o desenvolvimento da economia brasileira se não esse.
A minha convicção é que nenhuma realidade se processa desta ou daquela forma porque foi dito ou está sendo dito que assim é que tem que ser."

HISTÓRIA - "Em primeiro lugar, não é possível ao ser humano, aos homens e às mulheres, o campo da existência estar sem amanhã. Não dá.
E este amanhã tem que ser feito por nós enquanto sujeitos e objetos da história. Porque, enquanto estamos fazendo este amanhã na transformação do hoje, nós somos também condicionados pelo hoje que veio do ontem. Então, ninguém é só sujeito da história.
Mas é exatamente porque sei que sou objeto que posso transcender a condição de ser objeto e virar sujeito também."

MERCADO - "Eu não aceito que a ética do mercado, que é profundamente malvada, perversa, a ética da venda, do lucro, seja a que satisfaz ao ser humano.
O homem e a mulher se fizeram historicamente e continuam se fazendo, e aí a sua natureza se constitui. E esse conjunto de conotações, que fazem com que eu seja um homem e não uma palmeira, me leva para o que eu chamo um processo de ascensão, um processo de humanização.
A grande teimosia minha, de muita gente, do Darcy Ribeiro, por exemplo, é de continuar pregando esperançadamente, apesar do testemunho esmagador das condições materiais para a desumanização."

MAGISTÉRIO - "Passei dois meses no Recife e soube da presença de professoras primárias ganhando R$ 15 e ainda comprando giz de vez em quando com esses R$ 15.
Talvez fosse até melhor morrer e deixar de sofrer a impotência de amar. Porque assim, no fundo, não é possível o encontro permanente, presente, de um ser formando-se, mas já em outro nível de maturidade, com outro ser formando-se na infância.
Não é possível um encontro de curiosidades desamorosamente."

ESPERANÇA - "Outra coisa que eu acho também que esse livro tem é um gosto grande de ser esperançoso. É um livro que recusa, não temerosamente, a desesperança -porque para mim a desesperança não é propriamente uma virtude, mas é uma possibilidade.
Mesmo quando me veja em face da possibilidade de assumir a desesperança, eu faço o possível para encontrar o caminho para não desesperançar."

EDUCAÇÃO - "Se queremos mesmo que o país supere escândalos de injustiças, descompassos, precisamos levar a sério esse negócio chamado educação.
Eu falo a nós todos politicamente: é preciso na verdade ter uma decisão política, respeitosa da educação, da formação do educador e da educadora."

MUDANÇA - "Uma educadora reacionária é uma educadora que busca intervir na história através de uma formação antimudança no aluno. Eu tenho feito tudo que posso brigando por um tipo de formação que criticize, que me abra e abra o educando para a possibilidade de fazer um mundo menos feio e menos malvado."

AUTORIDADE - "Nós não resolvemos bem historicamente a tensa relação entre autoridade e liberdade. Às vezes é o exercício puro da autoridade que é visto como sendo autoritário.
O que eu acho é que falta a muitos de nós essa compreensão mais crítica do que é o limite e do exercício do estabelecimento do limite à liberdade e à autoridade."

ÉTICA - "Falta a nós uma quase arte de sugerir, pela prática e pelo discurso leve e claro, ao filho ou à filha, ao aluno ou à aluna, a aceitação ou o que eu chamo a assunção ética do limite.
O que eu quero dizer é o seguinte: quando o pai diz ao menino de quatro anos que ele não pode ficar em pé em cima dessa mesa, arrebentando as xícaras, esperneando, é preciso que haja aos poucos uma compreensão crítica da eticidade que há no respeito à mesa.
É preciso que já se comece a sugerir ao menino que ele não pode fazer aquilo não porque tenha medo de mim, mas porque eticamente vai inventando nele mesmo o erro em que consiste fazer aquilo."

PAI - "É o processo de introjeção da autoridade externa que vai se constituindo como autoridade interna.
Por isso que eu digo que a minha autoridade de pai, que comecei a exercer aparentemente quando tinha 25 anos, é algo que eu comecei a experimentar na minha relação com o meu pai como liberdade.
Foi como liberdade que, me relacionando tensamente com meu pai, eu comecei já também a produzir minha amanhã autoridade paterna."

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