São Paulo, terça-feira, 1 de abril de 1997
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Meninos pequenos, dramas grandes demais

MARILENE FELINTO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

A reunião de garotos demonstra que a terceira infância é mais importante, mais dramática -mas mais feliz- do que a adolescência. A reunião de garotos é comovente, pelo que revela do jeito como eles já vão vivendo a vida.
Chamam-se Felipe, Henrique, Daniel, Rafael, Lui, Lucas, Pedro etc., nomes simplificados de uma geração. Estão todos na terceira infância (dos 7 aos 11), mas que chamam, orgulhosos, de "pré-adolescência".
São todos filhos de pais separados, divorciados, mães solteiras. A desintegração da família foi a primeira grande dor da pequena vida deles, a primeira lição confusa, equação abstrata. Fizeram de tudo para não sofrer, para entender, para seguir inteiros depois de uma decisão que não cabia a eles.
Foi o primeiro dilema, o primeiro "com quem ficar?", "de quem gostar?". O primeiro "e se a culpa foi minha, e quem é que vai me querer, e se eu ficar perdido para sempre???!"
Mas eles saem, inteiros -ou tortos- como os 32 dentes da segunda dentição, que surge pouco a pouco na cara banguela. Às vezes parecem grandes demais, às vezes muito pequenos -fisicamente são altos, os pés gigantes. Têm linguagem própria, música, roupa e corte de cabelo próprios.
A gíria deles vai do vulgar ao literário. No vulgar, expressam-se sem qualquer constrangimento: "Quando eu chegar em casa, vou dar um cagão, soltar um barroso" (Felipe, 11, para "fazer cocô"). No literário, surpreendem pela novidade: "Na minha opinião, Chico Science apavora os Ratos, mano" (Daniel, 8). "Apavorar" é sinônimo de "superar", "ser melhor do que".
Revelam gosto sofisticado, estranho para a idade. Gostam de Cássia Eller ao vivo, cantando "mão na cabeça, malandro, se não quiser levar chumbo quente nos cornos, fdp", ou, então, "quem sabe eu ainda sou uma garotinha esperando o ônibus da escola... com minhas meias três-quartos".
A voga da música eles captam no ar, como se fosse um vírus novo: Skank um dia, Alanis Morissette no outro. Disfarçados, acham "dez!" conseguir driblar o bilheteiro do cinema e entrar nos filmes proibidos para menores de 12 anos -"Pânico", "Turbulência"-, mas mal escondem o medo que, no fundo, ainda têm de fantasmas e coisas do além.
Construindo cidades no computador, transportam-se, no minuto seguinte, para o ano 2000 -o programa é o "Sim City 2000"- e perguntam, intrigados, o que é um "lobby". Num instante criam-se dramas medonhos, tarefas incompreensivelmente árduas. Eles se irritam, choram como bebês.
-Eu tenho 12 questões de geografia para responder! Doze!, ele exclama, como se 12 fosse o maior número do mundo e geografia o mais terrível e inútil dos assuntos.
Bom é quando esses meninos estão felizes, quando se esquecem -ou quando ninguém lembra a eles- do drama que a vida é. Uma agonia, uma vaga e larga sensação de impotência: afinal, é muito dente para cair, outro monte para nascer, é muita rasgação de gengiva, é muita dor.

E-mailmfelinto@uol.com.br

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