São Paulo, quarta-feira, 2 de abril de 1997
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Ensaio documenta embate entre natureza e cidade de São Paulo

ARMANDO ANTENORE
DA REPORTAGEM LOCAL

Está logo ali, no coração financeiro de São Paulo, mas poucos prestam atenção.
A árvore centenária disputa espaço com o gradil que cerca a escola estadual Rodrigues Alves, em plena avenida Paulista, região central da cidade.
São imagens assim que os fotógrafos José Pinto e Iuri Moraes, pai e filho, garimpam pelas ruas da metrópole desde 1992.
Há uma semana, deram o trabalho por terminado. E, sem alarde, expuseram anteontem 28 das 300 fotos que o compõem. O hotel Meliá, na zona sul paulistana, abrigou a mostra, que durou um único dia, como parte de um encontro empresarial.
A dupla de fotógrafos prepara, agora, um livro com todo o ensaio, ainda sem data de publicação. Título provável: "Natureza Versus Cidade".
Um conflito que nem sempre gera imagens tão brutais quanto as da árvore perpassada pelas grades.
Às vezes, Pinto e Moraes enxergam a serenidade onde, à primeira vista, só deveria haver ameaça.
É o caso da pomba que repousa, distraída, sobre um muro salpicado por cacos de vidros. A cena aconteceu no Parque Continental (bairro da zona oeste), próximo à casa em que moram os fotógrafos.
Outras vezes, o trabalho da dupla registra flagrantes que beiram o "non sense".
Na rua Maria Antonia (região central), por exemplo, existe uma árvore que costuma servir de abrigo para motocicletas. Os motoqueiros prendem os veículos com correntes em torno dos troncos.
Moraes e Pinto fotografaram a árvore num momento de tranquilidade, quando não havia nenhuma moto por perto.
O que se vê, então, é quase uma instalação de um artista plástico: as correntes e os cadeados pendendo dos troncos como colares.
Harmonia
Entre as fotos, porém, sobressaem umas tantas que tentam espelhar não o embate, mas o relacionamento surpreendentemente harmonioso da natureza com os habitantes da metrópole. São contrapontos que apenas confirmam a regra do conflito.
Vale citar, aqui, uma imagem captada na favela do Jaguaré (zona oeste). Para não aguçar o desmatamento local, um morador preferiu construir seu barraco ao redor de uma árvore. Preservou a planta em meio à escassez de espaço.
Foi José Pinto, paraense de 67 anos, quem teve a idéia de realizar o ensaio "Natureza Versus Cidade". Repórter fotográfico há cinco décadas, iniciou a carreira num jornal de Belém.
Travou os primeiros contatos com fotografia ainda menino. Seu pai possuía um laboratório em casa, que permanecia todo o tempo trancado.
"Nunca me deixavam abrir aquela porta", recorda-se. "Quando finalmente me permitiram entrar, vi o papel branco mergulhar em líquidos e virar imagem. O fenômeno químico me soou como mágica."
Acabou se tornando laboratorista com 14 anos. Aos 15, arrumou a vaga de repórter fotográfico.
Em 1952, um avião norte-americano caiu na Amazônia e fez 60 mortos, entre turistas e tripulantes. Após nove dias e uma caminhada de 150 quilômetros, Pinto e outros dois colegas acharam os destroços da aeronave.
O "furo" lhe valeu um emprego na revista "O Cruzeiro", em São Paulo, a mais popular da época.
Trabalhou ali de 1952 a 1956, assinando reportagens com jornalistas lendários, como David Nasser e Assis Chateaubriand.
Quarenta anos depois de ingressar em "O Cruzeiro", já aposentado, andava pelo centro de São Paulo. Gostava de admirar umas palmeiras imperiais que viviam no vale do Anhangabaú.
Naquela manhã de sábado, entretanto, não as encontrou. Ou melhor, deparou apenas com os tocos das árvores, recém-derrubadas. O cenário -que lhe pareceu "grotesco, um cartão postal negativo da cidade"- inspirou o ensaio fotográfico.
No mesmo dia, Iuri Moraes, 30, aceitou o convite para ajudar o pai.
Obsessão
O próprio José Pinto reconhece que o trabalho se destaca "menos pelas descobertas artísticas e mais pelo caráter documental".
"Não nos preocupamos em explorar uma determinada linguagem estética. Colocamos a técnica a serviço da informação. Saímos às ruas sobretudo como repórteres, e não como estetas."
O fotógrafo diz que deve "à obsessão, à perseverança" boa parte das imagens registradas.
Conta que, no ano passado, diante de sua casa, um caminhão "atropelou" uma palmeira, rompendo-lhe um dos troncos.
Pai e filho fotografaram a árvore três vezes: um, 60 e 120 dias depois do acidente. O resultado é uma sequência em que o tronco partido vai apodrecendo lentamente.
"Só com persistência pudemos demonstrar como a ação conjunta do homem e do tempo sobre a natureza provocam destruições irreversíveis", enfatiza Pinto.
Apenas seis entre as 300 fotos do ensaio não são coloridas. "Desejávamos retratar a realidade o mais fielmente possível. Daí, optarmos pela cor", explica Moraes.
Todas as fotos em preto-e-branco foram tiradas na chuva, dentro de carros, por trás dos vidros.
Trazem imagens distorcidas, que lembram sonhos. "O ensaio inteiro prima pelo realismo. De repente, surgem seis cenas quase oníricas. O choque entre os dois universos nos interessa", teoriza Pinto.
Pelo menos 250 fotos já têm legendas, escritas por personagens ilustres da cidade, como o cineasta Carlos Reichenbach, o compositor Tom Zé e o cardeal arcebispo dom Paulo Evaristo Arns.

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