São Paulo, quarta-feira, 2 de abril de 1997
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Livro transforma Lévi-Strauss em crítico de arte

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

A seguinte história é contada pelos índios tlingit, do Alasca. Um jovem rei amava muito sua mulher. Mas ela ficou doente e morreu. Desconsolado, o rei procurou por toda parte um artista que fizesse uma estátua da morta, reproduzindo fielmente seus traços. Não conseguiu.
Só que na mesma aldeia do rei vivia um escultor, que conhecia a rainha e se ofereceu para fazer a estátua. O artista pegou uma bola de tuia (espécie de pinheiro) e modelou perfeitamente a mulher. Vestiu a obra com as roupas da morta e chamou o viúvo.
O rei ficou espantado com a semelhança e ofereceu grande recompensa ao escultor. Passou a tratar a estátua como se fosse um ser vivo. Por vezes, tinha a impressão de que ela se movia.
Certa vez, a estátua fez um ruído, como um estalo de madeira. Tiraram-na do lugar e descobriram que uma arvorezinha estava nascendo embaixo dela. Deixaram-na crescer, e é por isso que as tuias daquele lugar do Alasca são tão bonitas.
Quem narra esse mito é o antropólogo Claude Lévi-Strauss, no livro "Olhar Escutar Ler", de 1993, cuja tradução acaba de sair no Brasil pela editora Companhia das Letras.
Lévi-Strauss comenta a história: "O autor da estátua é um grande mestre, e (apesar disso ou por causa disso) ela fica a meio caminho entre a vida e a arte. O vegetal só pode gerar um vegetal, e a mulher de madeira só pode parir uma árvore. O mito tlingit faz da arte um reino autônomo, a obra se encontra aquém e além das intenções de seu criador... Em outras palavras, o único meio de a obra de arte perpetuar-se é dar origem a outras obras de arte..."
É nesse tom desconsolado e nobre, como se o próprio autor fosse um rei viúvo no Alasca, altivo, apaixonado e classicista, que termina o livro de Lévi-Strauss.
Trata-se de uma coletânea de ensaios sobre arte. A pintura de Poussin (1594-1665) e a música de Rameau (1683-1764) -não por acaso, dois grandes mestres do classicismo francês- ocupam a prodigiosa imaginação teórica do autor, que se aplica com igual facilidade à arte dos sioux, a um soneto de Rimbaud, às idéias do surrealista André Breton, às óperas de Wagner.
O interesse de Lévi-Strauss pela estética é conhecido há bastante tempo, mas a imagem que prevaleceu a seu respeito é a de um analista muito rigoroso e seco, uma espécie de engenheiro químico da mitologia universal.
Um dos pais do estruturalismo, foi talvez o único a se manter fiel a esse método de análise, que nos anos 60 funcionava como uma promessa de rigor definitivo para o campo, sempre instável e nebuloso, das ciências humanas.
Moda
O estruturalismo passou de moda, o encontro dos rigores da matemática e da linguística com a sociologia, a política, a psicanálise, o marxismo, a antropologia parou de dar certo, mas Lévi-Strauss prosseguiu teimosamente sua obra de mitólogo, de cartógrafo, de algebrista social.
Seria de esperar que esse livro, publicado em francês quando o autor tinha 85 anos, servisse como mero "divertissement", como passeio turístico por um terreno que sempre o interessou, mas de que os deveres do ofício etnológico sempre o afastaram.
Já se observou que a velhice, ao contrário do que possa parecer, é uma época em que o fútil e o supérfluo têm importância crucial. O filósofo Fontenelle, que morreu com quase 100 anos, dizia que não só para a infância, mas para todas as idades, há chocalhos com que brincar. E foi Proust, se não me engano, que fala da "imensa frivolidade dos moribundos".
Mas não há nenhum diletantismo, nenhuma frivolidade, nenhum espírito de complacência senil nesse livro de Lévi-Strauss. Como a estátua do mito indígena, o velho ícone do estruturalismo francês deu à luz aqui uma árvore belíssima, em pleno vigor.
O que espanta, acima de tudo, é a rapidez, a facilidade com que Lévi-Strauss relaciona fatos culturais e citações as mais distantes entre si. Num texto do pintor Delacroix (1798-1863), vê prefigurada a moderna teoria matemática dos fractais; num artigo do filósofo Diderot (1713-1784) já está escrito tudo o que se poderia dizer contra "La Grande Jatte", o quadro do pós-impressionista Seurat (1859- 1891); a teoria romântica do "gênio artístico" vigora entre os povos fabricantes de cestos do Novo Mundo.
Nesse inimigo jurado do historicismo e do etnocentrismo, os exemplos mais díspares, as citações mais longínquas no tempo e no espaço se encontram sempre ao alcance da mão. Trata-se apenas de juntar, de aproximar, de relacionar.
Os leitores de Lévi-Strauss conhecem seu texto clássico sobre a bricolagem -a arte de montar objetos novos a partir de fragmentos e peças tiradas ao acaso de outros objetos.
Temos nesse livro um exemplo de bricolagem universal. A um parágrafo sobre Proust, segue-se outro sobre as relações entre os impressionistas e o gravurista japonês Hokusai; tudo isso é preâmbulo para uma discussão sobre Poussin.
São autores, na verdade, que operavam eles próprios com fragmentos, com pedaços da própria obra. Um quadro de Poussin parece ser "recortável", parece ter sido feito com a colagem de diversas figuras, matematicamente discretas entre si.
Mesmo Proust concebia seu romance como um mosaico. A continuidade, a ligação entre diferentes trechos de uma mesma ópera, é o que existe de mais interessante nas partituras de Rameau.
Paradoxalmente, é esse jogo entre o contínuo e o descontínuo, o todo e as partes, o fragmento e a obra, o que dá unidade e rigor ao livro de Lévi-Strauss. Tanta erudição e tanto prazer na erudição seriam pretexto fácil para devaneios escorregadios, untuosos, elegantes.
Tudo aqui é seco, "montado", discreto, e por isso mesmo incrivelmente coerente. Num trecho luminoso e árido, o autor dá sua definição de obra de arte: "O belo não se reduz à mera percepção de relações, já que isso pode ser dito de qualquer objeto". (Antes de continuar, explico: uma máquina ou um organismo vivo, por exemplo, estão cheios de relações entre suas diversas partes, nem por isso são belos.)
Prossegue Lévi-Strauss: "Num belo objeto, essas relações estão elas mesmas relacionadas entre si, o que confere maior densidade ao objeto". Ou seja, o que faz a beleza de uma obra, de um objeto não é que cada parte esteja relacionada com o todo, mas sim o fato de cada relação das partes com o todo estar, ela própria, relacionada com as demais relações.
Idéia difícil de entender, mas que vale a pena tentar entender. Lévi-Strauss propõe, em termos mais modernos, a definição kantiana -que elogia explicitamente- da obra de arte como uma "finalidade sem fim". Isto é, algo coerente e organizado, como se fosse uma máquina ou instrumento útil, só que sem utilidade.
E segue, ao mesmo tempo, a lição de Valéry, que imaginou, na sua "Introdução ao Método de Leonardo da Vinci", a aventura de um intelecto mais voltado para as relações entre os objetos do que para os objetos em si.
Mas aquilo que, nos textos de Valéry, tem algo de coquetismo intelectual (o piscar de olho de cada aforismo inteligentíssimo, a ironia de alta estirpe) assume aqui uma seriedade selvagem de engenheiro, de matemático. Um Kant no século 20, ouvindo Rameau e discutindo Diderot: espetáculo estranho, tão exótico para nós, a bem dizer, quanto um quadro mitológico e hierático de Poussin -é isso o que o livro de Lévi-Strauss nos oferece.
O último moicano do estruturalismo (se me for perdoado o mau gosto jornalístico da expressão), com sua antipática, anti-romântica rigidez, deu à luz um livro extraordinário.
Curioso que termine com um mito de fecundidade, com um recurso ao imaginário vegetal -a árvore/estátua que dá origem a uma nova plantinha.
Pois nada mais próximo de Lévi-Strauss que o mundo mineral, matemático, e nada mais alheio a ele do que a metáfora romântica da obra de arte como organismo, como floração.
Mas imagino que a própria matemática moderna ande cuidando desses assuntos ultimamente, com a teoria dos fractais; não me meto nisso, claro. Vejo apenas, nesse livro, a floração espantosa, a transformação do antropólogo em crítico de arte; não em artista, pois artista, mesmo nos textos mais difíceis, Lévi-Strauss sempre foi.

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