São Paulo, quinta-feira, 3 de abril de 1997
Próximo Texto | Índice

Vazio leva Updike a escrever

JOHN UPDIKE
ESPECIAL PARA A "NEW YORKER"

Há um momento, em "Lawrence da Arábia", onde se vê um pontinho preto minúsculo, no horizonte trêmulo do deserto, crescendo lentamente até virar um xeque galopante, interpretado, se não me falha a memória, por Omar Sharif. Um livro que a gente escreve é assim também: uma pequena mancha vibrando, que aumenta gradualmente até ganhar presença, de preferência linda e irresistível. Quando me perguntam quantos livros já escrevi, podem achar que estou sendo modesto se respondo que não sei exatamente. Mas será que só devo contar os quarenta volumes em capa dura que a prestativa editora Alfred A. Knopf publicou? Mas e os cinco livrinhos para criança, ou a edição em brochura, já fora de catálogo, das "Olinger Stories"; ou o estranho, mas muito querido quase-romance intitulado "Too Far to Go" (Muito Caminho Pela Frente) nos Estados Unidos e "Your Lover Just Called" (Sua Amante Ligou) na Inglaterra, que reúne uma série de contos interligados, dos quais nem todos apareceram depois em outras coletâneas? E o que dizer das várias edições limitadas, com material que muitas vezes não se encontra, em capa dura, em nenhum outro lugar?
Eu talvez pense com mais carinho no processo da fabricação de um livro -ficar fuçando com tipologia, provas, cabeçalhos, capa, orelhas, tecido da capa dura- do que na escrita em si. Esta última é algo que se suporta, como tributária da primeira, cujo produto final imaginado, cheirando a cola e papel novo, fica suspenso à distância como uma miragem luminosa, me atraindo e levando até o fim de mais algum dia cinzento de trabalho. O momento em que o livro pronto ou, melhor ainda, um pacote bem amarrado de livros chega à porta de casa é o momento da verdade, o clímax: um prazer que dura, talvez, cinco minutos, até que se note o primeiro erro tipográfico, ou de produção. Nalgum estágio do trabalho, "Pigeon Feathers", uma coletânea de contos, acabou ficando com a margem superior muito estreita; outra, "Problems", com a margem de baixo pequena demais. A capa que eu havia proposto para "The Coup", baseada numa fotografia de casinhas quadradas de barro, em Timbuktu, foi desdenhada por forças superiores, com o argumento de que o livro ficaria com a aparência de não-ficção; e a capa toda verde aceita como alternativa transformou-se, graças a um efeito de tintura do estoque plastificado, nalguma coisa muito distinta do verde brilhante que eu vira nas provas. Falhas inevitáveis como essas, muito embora de natureza extraliterária, inauguram meu processo de estranhamento do livro, que se torna desagradável para mim antes mesmo de começar sua vida pública.
A agitação inicial dessa vida, marcada por espirais esperançosas de volumes nas livrarias, propagandas nos órgãos mais chamativos do mercado de livros, resenhas inexoravelmente mistas e entrevistas encabuladas com o autor entontecido é (como diz Shakespeare) "brutesca e curta". Logo, logo, o livro, que já não era exatamente notícia, deixa de ser notícia. Avistando uma pilha de volumes não comprados, cintilando pateticamente na vitrine, o autor desvia o olhar e, como o levita na parábola do bom samaritano, passa ao largo, do outro lado da rua. Com seus pequenos detalhes de fachada -a tipologia do título, outrora fervorosamente debatida, ou a cor que tinge o alto das páginas- os livros clamam por um reconhecimento agora gelidamente negado. Em pouco tempo, como um coro de vozes ululantes num navio que naufraga, os livros morrem e desaparecem; são tragados pela maré para as prateleiras do fundo das livrarias e de lá para as montanhas de volumes de devolução, reaparecendo um ano ou dois mais tarde, nos catálogos de ofertas, e em brochura. Os extratos de vendas, quando chegam afinal, são como restos do naufrágio, que sobem à superfície de um mar inescrutável e cruel.
E contudo, os livros não desaparecem de todo. O autor fica com alguns exemplares e espia outros na casa dos filhos e amigos, onde ele mesmo os deixou. ocasionamente, observa um estranho concentrado, com a testa franzida, lendo algum deles, num avião, ou na sala de espera de um hospital. Meu instinto é arrancar o livro das mãos do leitor, e me pergunto se a reação é anormal, ou compartilhada universalmente pelos membros da neurótica profissão literária. Tal intimidade silenciosa era justamente o que se buscava, mas agora nos choca; parece tão nua e fora de controle. O estranho, com seus dedos gordurosos e olhar vazio, evidentemente NÃO é o leitor ideal, miraculosamente sensível a tudo e capaz de infinito perdão, que eu cortejava vagamente enquanto escrevia. Meu desejo sorrateiro e ganancioso de ver meus livros vendidos e lidos não se sustenta ao menor encontro com a realidade.
Uma vez por ano, eu ajudo a montar uma feira de livros da paróquia, e fico postado entre mesas e mesas, se perdendo no horizonte, das obras descartadas de John P. Marquand, Thomas B. Costain, A. J. Cronin, Mary Ellen Chase (que escreveu, há décadas, uma resenha generosa do meu primeiro livro), Pearl Buck, Frank Yerby, John Gunther, Hendrik Willem Van Loon e inumeráveis outros, que, nos longos meados desse nosso século que finalmente vai chegando ao fim, pipocavam nas listas de mais vendidos e nas varandas, quartos e aposentos privados da burguesia local. A morte e as demolições liberaram esses livros dos nichos onde estavam escondidos. Alguns dos meus próprios títulos amarelados aparecem no meio dos outros; seus compradores, espantados de me encontrar vivo, bem ali, me pedem um autógrafo e eu, assim, posso tocar por um instante, quando se aproximam de mim, depois se afastam, exemplares batidos de "Couples", "Rabbit"s amassados e encharcados de chuva e "Witches of Eastwick"s com cantos de folha faltando e papel ressecado, o roxo diabólico que eu escolhi para a capa esmaecido com o passar dos anos e transformado em inocente malva. Esses meus livros foram postos à prova. Viajaram no território selvagem e mal descrito do público leitor. Suas cicatrizes me deixam com vergonha. Enquanto eu me encolhia, longe de todos os olhares, eles se aventuravam bravamente, confiando na sorte.
A indústria literária, com seus esforços intermitentes de imitar o glamour vastamente mais rico das indústrias do cinema, da televisão e da música, resume-se mesmo aos livros, restos duradouros e humildes da leitura. Minha mulher anda interessada em genealogia e junto com ela tenho visitado, durante o verão, muitas cidadezinhas dos Estados de Connecticut e Nova York. Ela gravita em torno à seção de história regional das pequenas bibliotecas, muito asseadas, de tijolo à vista e pedra; e eu fico vagando pelas prateleiras de literatura em geral, procurando furtivamente, entre os numerosos "best-sellers" de Anne Tyler e Leon Uris, os meus próprios títulos. Geralmente encontro um ou outro, alguns escritos há tanto tempo que já me sinto quase seu avô. O estado da lombada e as datas carimbadas nos cartões de controle me dizem mais do que eu gostaria de saber sobre o número de meus leitores, ou falta deles. Alguns, quase sempre produto de quando eu era jovem -"Rabbit, Run", "The Centaur", "Pigeon Feathers", com as margens de cima apertadas- já estão gastos o bastante para merecer uma sólida segunda encadernação. Numa prateleira de metal, em uma cidade pequena do vale do Hudson, com o seu próprio riacho afluente gorgolejando contra o dique e por baixo da ponte, junto à entrada da biblioteca, pude notar que "S", com sua capa cor-de-rosa atrevida, tinha uma lombada distintamente mais torta do que os outros: tinha sido mais lido. As resenhas, como eu bem me lembrava, foram azedas; uma boa dose de resmungos feministas, muito embora eu tivesse me dado, de corpo e alma, à minha heroína, que abandona a família chique por uma parca comunidade hinduísta. A editora nutria grandes esperanças de vendas; mas a confortável primeira tiragem acabou se revelando mais do que suficiente. Agora, anos depois, enquanto a água corria sonoramente sobre o dique ao lado, na disso parecia ter importância. O que importava era que, a julgar pela aparência do livro, os leitores dessa pequena cidade -em sua maioria leitoras, aliás, como é sempre o caso- reconheceram em "S." minha tentativa de escrever o livro de uma mulher, um livro para mulheres. O público anônimo parecia estar me dando uma espécie de bênção; caladamente, eu fora compreendido.
Enquanto isto, os livros vão se multiplicando. Edições estrangeiras, edições revistas, "paperbacks" em novo formato vêm todos bater à porta pedindo um pouco de carinho. Meus próprios livros já enxotaram todos os outros de um quarto e estão avançando no seguinte. Caixas e caixas de exemplares fazem sentir seu peso sobre as vigas de sustentação do sótão e ficam mofando no porão e no celeiro. Seu volume crescente ameaça me deixar alienado no sentido disso tudo. O limite finíssimo da cunha -meu primeiro livro, nem bem um livro, uma coletânea quase só de versos ligeiros, com encadernação econômica cinza-claro e lombada preta- tinha uma pureza resplandecente, engolida pouco a pouco no espessamento posterior. Quando olho para trás, tendo a esquecer o conteúdo e, se me pedirem para dar uma lista dos meus favoritos, penso com maior afeto naqueles volumes, como "Hugging the Shore" e "Buchanan Dying", que ficaram especialmente bons, me parece, como exemplos de produção de livro - margens boas, capa bonita, peso agradável.
Uma coleção completa dos quarenta volumes em capa dura da Knopf descansa numa prateleira policromada, do outro lado da mesa. Estão sem sobrecapa, com os erros marcados e anotações para alguma última edição perfeita. Nalgum lugar, em meio a esses vários milhões de palavras meditadas, revisadas e impressas, eu devo ter dado o melhor de mim, entoado a minha música, dito o que tenho para dizer. Mas minha consciência em pânico, agora que se aproxima a idade limite dos 65 anos, volta-se para tudo o que não está lá - praticamente tudo, de pronto me parece. Mundos inteiros não estão. Confrontado com esse vazio me vem uma coceira para -o que mais?- escrever outro livro, um livro que, como um ingrediente adicional polvilhado na mistura complicada, vai fazer a coisa inteira crescer. O pontinho preto no horizonte começa a se agitar. Entrecerrando os olhos, já sou quase capaz de enxergar a capa e distinguir a página de rosto, em Perpétua, corpo 36.

Livro: Na Beleza dos Lírios
Quanto: R$ 35,00 (500 págs.)
Tradução Arthur Nestrovski.

LEIA MAIS sobre Updike à pág. 4-3

Próximo Texto: Coluna Joyce Pascowitch
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.