São Paulo, quinta-feira, 3 de abril de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A USP no espaço

FLÁVIO FAVA DE MORAES; GLAUCIUS OLIVA

O momento histórico desse experimento sugere algumas reflexões sobre o pioneirismo e a liderança da USP
FLÁVIO FAVA DE MORAES
e GLAUCIUS OLIVA
Projeto de pesquisa na área de biotecnologia, desenvolvido por pesquisadores da USP no Instituto de Física de São Carlos, será o primeiro experimento do país a ser realizado em uma missão espacial da Nasa. Os materiais de pesquisa serão levados para o espaço hoje, no ônibus espacial Columbia da agência norte-americana, permanecendo em órbita por 16 dias.
Esse projeto, do Laboratório de Cristalografia de Proteínas da USP de São Carlos, visa obter a cristalização de proteínas em ambiente de microgravidade.
O objetivo da experiência, voltado para o desenvolvimento de novas drogas terapêuticas, é elucidar a estrutura tridimensional molecular dessas proteínas, por meio do processo de cristalização. Em um dos projetos, o alvo é uma proteína ligada à doença de Chagas, e, no outro, visa-se estudar uma proteína da semente de jaca que pode ajudar no combate de infecções e processos inflamatórios.
O planejamento racional de fármacos baseado em estruturas é uma tecnologia moderna de descoberta de novas drogas que se baseia na inibição ou estimulação da atividade biológica de macromoléculas, proteínas ou ácidos nucleicos (DNA e RNA), responsáveis por várias doenças, por meio de compostos desenhados para interagir com regiões específicas dessas macromoléculas.
Assim, é necessário conhecer a estrutura tridimensional da proteína-alvo, e, para tanto, é preciso inicialmente cristalizá-la.
Num cristal, um número muito grande de moléculas da mesma proteína deve se organizar num arranjo periódico, a partir de uma solução. Como em ambiente de microgravidade o movimento das moléculas na solução é muito mais lento, torna-se mais provável que as moléculas consigam se ordenar de forma perfeita na rede cristalina. Assim, os recursos de cristalização no espaço representam uma grande vantagem nesse processo.
O momento histórico desse experimento sugere algumas reflexões sobre o pioneirismo e a liderança da USP, no contexto científico nacional e internacional.
Primeira universidade brasileira, a USP prima pelo trinômio ensino/pesquisa/extensão, com forte impacto na formação de lideranças, na realização de pesquisas e desenvolvimentos fundamentais para o país e na prestação de serviços da mais alta qualidade e tecnologia para a sociedade. O primeiro microcomputador e os primeiros transplantes de órgãos humanos no Brasil foram realizados na USP, e há exemplos similares em todas as áreas do conhecimento.
A iniciativa dos pesquisadores de São Carlos na exploração das características únicas e peculiares do espaço em aplicações biotecnológicas de interesse médico e farmacêutico é um exemplo renovado desse pioneirismo.
A virada do milênio tornará realidade uma ficção que até hoje tem ocupado as páginas de romances e as telas de cinemas, com a construção da Estação Espacial Internacional, uma grande plataforma espacial permanente, em órbita terrestre, com laboratórios e facilidades para experimentos e aplicações, em áreas como microeletrônica, novos materiais, biotecnologia e medicina.
As perspectivas tecnológicas dessa nova fronteira do conhecimento são ainda subestimadas e, se negligenciadas na formulação de estratégias de desenvolvimento científico e tecnológico, podem resultar em atraso irrecuperável e dependência inevitável.
Nesse sentido, a iniciativa da USP, apoiada pelos órgãos federais de gestão e pesquisas espaciais (Agência Espacial Brasileira e Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) e financiada também pelas agências de fomento Fapesp, PADCT etc., abre o caminho para a inserção brasileira no seleto grupo de países que buscam explorar os recursos do espaço em aplicações científicas e tecnológicas.
A peculiaridade desse experimento é sua abordagem multidisciplinar, com a aplicação de tecnologia espacial de fronteira em problemas de interesse nacional, como o das doenças infecciosas. Espelha-se assim a tendência mundial de canalizar o potencial científico e tecnológico, de forma integrada entre as diferentes especialidades, no entendimento e na solução de problemas sensíveis para toda a sociedade.
Essa integração universidade/sociedade, unindo critérios de excelência científica e inserção social, é emblemática para a USP, refletindo a maturidade científica de seu corpo acadêmico e de suas lideranças.

Flávio Fava de Moraes, 58, é reitor da Universidade de São Paulo e vice-presidente da Associação Internacional de Universidades.

Glaucius Oliva, 37, é professor-associado do Instituto de Física de São Carlos, da USP, doutor em cristalografia pela Universidade de Londres e coordenador do projeto de cristalização de proteínas na nave Columbia.

Texto Anterior: PASSEIO; ALFORRIA; SEM INEDITISMO
Próximo Texto: Walter Clark e a transformação da TV
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.