São Paulo, segunda-feira, 7 de abril de 1997
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Sem beijo, Stacy

GUSTAVO IOSCHPE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Incrível como americano consegue avacalhar tudo. A Estátua da Liberdade -criação francesa- tão bonitinha que era e os americanos botam um dourado no meio. O hambúrguer -alemão- tava ótimo até os gringos inventarem de colocar picles e bacon no meio. Então eu já não devia me surpreender mais, mas como brasileiro teimoso nunca perco as esperanças.
Foi por isso que inventei de participar de uma organização estudantil por aqui. Negócio fino, faz intercâmbio de profissionais em oitenta e não sei quantos países, mais de sessenta mil pessoas participando etc. Vou na primeira reunião e tá lá o presidente, da minha idade, todo endomingado no melhor terno, falando sobre propostas mundiais, globalização e todas essas outras invencionices. Taí, gostei. Resolvi fazer parte, cheio de boa-fé.
Chego na primeira reunião, e o negócio muda de figura. O presidente resolveu deixar o terno no armário e veio com o vestimento apropriado a sua idade e país de origem: camisa de flanela meio rasgada de encontro a cueca samba-canção do Pato Donald que aparecia quase completa, já que a cintura da calça ficava em volta do joelho. Paciência -penso eu-, o cara era inteligente, vejamos o que ele tem a dizer. O presidente pede pra deixar esse papo de internacionalização de lado, que tem coisa mais importante primeiro: o grito de guerra.
Claro, se não tem grito de guerra, não se é um grupo, aqui. E o grito é pra quando tiver conferência com o pessoal de outros Estados. Tá certo que é uma organização mundial, mas o que interessa mesmo é ganhar, no grito, do pessoal do outro lado do rio. Então sobe o presidente numa mesa, grita a plenos pulmões ("Aaaaahhhhh"), enquanto bate no peito e depois repete, ritmadamente e com coreografia: Ahuga - Ahuga - Ha - Ha - Ha. (Não descrevo a coreografia que aí já é demais).
Tudo bem, termina essa parte e vamos ao que interessa. Viu? -pensei com os meus botões- nem é tão mal assim. Começamos a falar -como convém a uma entidade global- sobre choques culturais. Tudo ótimo: eu falo sobre o Brasil, um cara sobre o Quênia, uma guria sobre a Itália. Depois abrem espaço pros americanos contarem sua vivência.
Uma loirinha agita a mão freneticamente. Fala, filhinha. Conta a gordota -claro, porque as legítimas têm umas graxas sobressalentes- que recentemente foi para a inóspita e exótica América do Sul (a que ela chama de "down there", pra não deixar dúvidas de quem é que manda aqui). Passou uma monstruosidade de tempo: duas semanas. Imagine só, que honra a nossa, hein? Duas semanas. E aí, Stacy, qual foi o choque cultural?
"Ah", conta Stacy, "eles 'down there' querem beijar todo mundo. Nem me conheciam, já vinham beijando minhas bochechas. Eu ficava pensando, por que que eles querem me passar todos esses germes?" Que horror, hein, Stacy. Milhares de germes por segundo. Mas e aí, Stacy, o que você (este ser superior) diria para quem pretende conhecer uma cultura nova? "Bom, tipo, tem de ser 'adaptable'. E ter paciência, que sempre se encontra um banheiro pra se lavar."
Isso é que é ser adaptável: deixar ser infestada por todos esses germes de todos esses aborígines e ainda esperar pra ir ao banheiro. Valeu, Stacy. A galera aqui de baixo agradece. Sem beijos, não te preocupa.

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