São Paulo, segunda-feira, 7 de abril de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

'Guantanamera' é testamento cubano

FERNANDO DE BARROS E SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Guantanamera", último filme do cubano Tomás Gutiérrez Alea (1928-1996), tem o sabor de um duplo testamento: da obra do cineasta e da era de Fidel Castro.
Testamento que funciona como verso e reverso da mesma medalha: a vitalidade que transborda da obra de Alea depende do retrato melancólico que faz dos estertores do regime castrista. Este, despido da aura épica que o iluminava no período heróico do comunismo à cubana, surge no filme como uma sucessão de ilusões perdidas.
Várias viúvas do socialismo torceram o nariz diante do filme. Viram nele um sintoma de ressentimento, uma espécie de rancor anticomunista justamente no momento em que o capitalismo crava suas quatro patas sobre o planeta.
Mas "Guantanamera" é bem mais que um panfleto anticastrista. Alea é pouco dogmático, o que fica sugerido já a partir da mistura de estilos do filme, que oscila entre a chanchada, o melodrama, o realismo quase documental e pitadas de realismo fantástico.
Essa indefinição estilística, que poderia parecer uma fraqueza estrutural do filme, talvez seja a sua força. Apesar de seu sarcasmo, Alea consegue aproximar-se da tragédia cubana de maneira generosa e às vezes afetiva, o que o afasta desde o início de um certo anticomunismo locado em Miami, que espera pela morte do caudilho para invadir a ilha e entupi-la de McDonald's, como se fosse fazer com isso uma nova revolução.
"Guantanamera" retoma, no ponto de partida, o repentismo radiofônico de Joseíto Fernandez, cantor cubano que na década de 50 satirizava as notícias de jornal improvisando sobre a letra da canção "Guajira Gantanamera".
São duas histórias que se cruzam na estrada, entre Guantánamo e Havana, uma de um cortejo fúnebre, outra de uma caminhão de cargas, ambas tendo como pano de fundo amores adiados.
A primeira tem como protagonista central Adolfo (Carlos Cruz), um burocrata decadente que, rebaixado à condição de agente funerário, cria um esquema especial para transportar cadáveres de uma cidade a outra trocando o féretro de carro várias vezes com a finalidade de racionar combustível.
Ele vai testar sua "teoria" no transporte do corpo da tia de sua mulher, a ex-professora Gina (Mirtha Ibarre).
A morte de tia Lolyta (Conchita Brando) ocorre no dia em que reencontra um músico de província, Cândido (Raul Eguren), por quem fora apaixonada durante 50 anos.
No trajeto, o cortejo fúnebre cruza casualmente o caminhoneiro Mariano (Jorge Perugorría, de "Morango e Chocolate"), ex-aluno de Gina, que tem por ela uma paixão interrompida.
A falência da idéia do "enterro planificado" e o renascimento do amor abortado entre a professora e o caminhoneiro são os pólos a partir dos quais a trama se desenrola.
Alea embaralha a todo instante os registros da história afetiva dos personagens com os da história oficial no seu dia-a-dia mais miúdo, fazendo com que a primeira vá se redimindo na medida em que a segunda vai sucumbindo na figura de Adolfo, o marido burocrata.
Ao confinar, no final, a felicidade à esfera privada e amorosa, "Guantanamera" sugere que, mais do que o comunismo, seu alvo talvez seja a ilusão da política.

Filme: Guantanamera (1995)
Diretor: Tomás Gutiérrez Alea
Elenco: Mirtha Ibarre e Jorge Perugorría, Carlos Cruz e Raul Eguren
Lançamento: Top Tape (011/826-3066)

Texto Anterior: 'Pinocchio' contracena com Landau
Próximo Texto: PELO MUNDO
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.