São Paulo, segunda-feira, 7 de abril de 1997 |
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Parabéns para o orgasmo nesta data querida
FERNANDO GABEIRA
* Era um casarão na rua Alice. O senhorio, pintor e poeta, construiu dois andares no fundo, onde tinha meu espaço, com vista para o Cristo e o Pão de Açúcar. Na casa, uma clínica reichiana e um velho Corcel branco, indicando que os terapeutas até poderiam estar se divertindo, mas não viam a cor do dinheiro. Cem metros, um pouco antes da curva, a mansão cor-de-rosa, com patos e galinhas no quintal: o famoso rendez-vous da rua Alice, onde, segundo a lenda, iam se prostituir meninas com uniforme de normalista. Teoria e prática eram vizinhos e talvez nem se dessem conta um do outro. Mas se houvesse uma utopia do tipo orgasmo num só país, creio que esse país começaria ali na sinuosa curva da Alice. A clínica era reichiana, mas não seguiu o seu guru até as teses loucas dos últimos dias. Não se montavam engenhocas para medir o orgasmo, pois pelo menos isso se sabia: o orgasmo era alegre, selvagem, incapaz de ser domado estatisticamente, já que desafiava controles marciais, religiosos. Como dizia o poeta, era uma flor que nasce no asfalto. Onde é que fomos atropelados e tudo pareceu, de repente, tão empoeirado como o velho Corcel branco, parado na porta? Centenas de terapias caíram sobre o corpo, da aura à íris, dos florais às plantas dos pés, antiginástica, kundalini, massagearam até os ossos. Vieram os instrumentos: cronômetros, bicicletas ergométricas, o chão tinto de faixas, indicando metros, quilômetros a serem percorridos em horas, minutos, segundos, frações de segundo. A eficácia da produção teceu uma nova couraça. Deixou-nos aqui, com um cinto de castidade, enquanto ia à guerra, contra os radicais livres, mouroxidantes e colateurois. Sem falar do vírus que nos aterroriza desde a morte do Markito e vem matando gente a partir daquela época, profetas como Marinho, que dizia: a humanidade agora será forçada a sentir o gosto de chupar bala sem tirar o papel. Apesar de tudo, ainda se goza na rua Alice e em quase todas as ruas do mundo. É uma ilusão pensar que o orgasmo tenha começado com o Reich. O inverso, possivelmente, é verdadeiro. Ilusão maior é pensar que passou toda essa onda em torno do corpo. Ela ficou mais séria, ganhou uma dimensão que Dolly revelou dramaticamente, mas ainda uma dimensão sensacional. Projetos menos falados, como o Genoma, que vai mapear todo o mapa genético e consumir US$ 3 bilhões, revelam que há um longo debate sobre as consequências e vantagens dessa aventura científica. Antony Guiddens ("Beyond Left and Right") lembra bem que quase todos ocidentais hoje -os que ultrapassaram a linha da pobreza- fazem alguma espécie de dieta. Não para emagrecer, mas para manter a saúde diante de uma infinidade de informações sobre alimentos e sua repercussão. Ele mesmo lembra que a ecotoxicidade, atacando-nos diariamente, aos pouquinhos, é como a posse do corpo por centenas de milhares de formigas, que, no princípio, apenas se fazem sentir, mas com o tempo acabam nos derrubando. O corpo escapou do nosso terapeuta do bairro, do japonês que recoloca nossa coluna na posição correta, da leitora de tarô com suas saias compridas. Poderosas indústrias, entre elas a de biotecnologia, desenham nossas formas, do músculo das coxas à predisposição para infarto. Mais do que nunca, o orgasmo com seu poder subversivo precisa balançar nossas ancas biônicas, eletrizar silicones, próteses de acrílico. O desastre já aconteceu. Saudemos o orgasmo com um parabéns para você. Além do mais, ainda é a melhor forma de despistar os vizinhos. Os cem anos de Wilhelm Reich são um bom ponto de partida para um debate sobre o corpo que já não é mais (aliás, quando foi?) natural e implica uma incessante negociação de sua vida no contexto de informações, medos e descobertas científicas. Ando muito ocupado, só posso contribuir com um título para esse gigantesco balanço teórico: foi bom pra você? Texto Anterior: Amarga Ilusão Próximo Texto: Teatro faz festival de outono em São Paulo Índice |
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