São Paulo, sexta-feira, 11 de abril de 1997
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O último dos românticos

JOSÉ MURILO DE CARVALHO

A nova consolidação da correspondência ativa de Euclides da Cunha é a mais completa compilação, desde a que foi feita por Afrânio Coutinho, em 1966, nas "Obras Completas". Além de crítica cuidadosa do material já anteriormente publicado, a consolidação traz material novo, sobretudo do acervo de Reinaldo Porchat. A edição vem enriquecida com um elenco de destinatários e com um índice de cartas e destinatários. Salvo alguns deslizes de cópia ou impressão, trata-se de obra preciosa não só para os admiradores de Euclides, como para todos os interessados em Brasil. A lamentar apenas a falta de notas que esclareçam para o leitor de hoje episódios a que a correspondência faz alusão.
As cartas começam em 14 de junho de 1890 e terminam em 12 de agosto de 1909, três dias antes do assassinato de Euclides. Apesar do fato de já terem sido na maior parte publicadas antes, ninguém pode escapar ao impacto de sua leitura, porque ninguém pode escapar ao impacto de Euclides. Nelas está desenhado, com a honestidade de que tanto se orgulhava, um auto-retrato do genial caboclo. Um auto-retrato, em texto, que lembra os de Van Gogh, em tela, cujas linhas tortuosas revelam uma personalidade inquieta e atormentada. Nesta breve resenha será possível transmitir apenas parcela mínima do impacto causado a este leitor.
Creio que não poderia fazer melhor do que deixar que as próprias cartas desvendem aos poucos a personalidade e o pensamento de Euclides. No campo do pensamento, nota-se a única mudança significativa ao longo dos anos, a que se verifica na visão da República e da política. Pela data em que começam, as cartas não revelam a fase de republicanismo rubro e militante, referente ao período da Escola Militar até a Proclamação da República, embora haja referências retrospectivas a ela. Na primeira carta da coleção, no entanto, de 14 de junho de 1890, endereçada ao pai, já aparece o desencanto com a especulação financeira, com a decomposição de caracteres, com o aniquilamento de individualidades. Dói, sobretudo, a Euclides, ver o antigo ídolo, Benjamin Constant, por quem seria capaz de se sacrificar, descer à vulgaridade de outros políticos quaisquer, desmoralizar-se na prática do filhotismo. Mantém, no entanto, a fé na República. Retrai-se apenas da política, arrependido de ter algum dia se interessado por tal assunto ("Carta a Porchat", 23/05/93).
A Revolta da Armada, 1893-94, desperta-lhe o chauvinismo nativista contra países estrangeiros, sobretudo os civilizados, como a Inglaterra. Até 1897, época da campanha de Canudos, mantém a crença na República como princípio, aliada à profunda descrença nos homens que a representam. Prefere trabalhar por ela exercendo a obscura profissão de engenheiro, em recantos afastados da agitação política. A revolta de Canudos leva-o, num primeiro momento, a envergonhar-se da República por ter ela curvado a cerviz ante "uma horda desordenada de fanáticos maltrapilhos" ("Carta a João Luís", 14/03/97). Declara-se descrente da terra onde lamenta ter nascido. Mas ainda insiste que a república, como ideal, é imortal. Depois da viagem à Bahia, nem mais como princípio a república lhe parece atraente. Fala em República hilariante, em bandalheira sistematizada, em atmosfera moral própria de batráquios, e chega a admitir a hipótese de uma monarquia, desde que guerreira e atrevida, capaz de nos levar a invadir o Prata e subordinar a Argentina ("Carta a Escobar", 21/04/1902). A política é vista como "grande conspiração contra o caráter nacional" ("Carta a Escobar", 25/12/1901).
O Brasil, como um todo, é então visto como o pior dos piores países possíveis e imaginários. A grande valia da carreira diplomática, diz Euclides a Oliveira Lima, é de ser uma carreira para fora do Brasil. A única razão que o reconcilia ainda com o país nos últimos anos é o barão do Rio Branco, seu chefe no Ministério das Relações Exteriores, a quem dedica enorme admiração. Considera-o "o único grande homem vivo desta terra", superior a sua época, insubstituível, reminiscência de uma idade de ouro desaparecida ("Carta a Escobar", 13/06/1906 e "Carta a D. da Gama", 15/08/1907).
Seu patriotismo é inquestionável. Revela-se na obsessão de trabalhar pela pátria, como anônimo engenheiro no interior de Minas e São Paulo, ou como demarcador de fronteiras no Purus. João do Rio chama-o, por isso, de único funcionário público romântico. O amor pelo Brasil revela-se ainda quando se comove com o apoio do monarquista conde de Afonso Celso, autor de "Por Que Me Ufano de Meu País", a sua candidatura à Academia Brasileira de Letras. Acima da divergência política, diz ele, une-os "o amor à nossa terra", o apego ao Brasil. A mesma emoção ele sente ao tomar posse no Instituto Histórico, entre trêmulos velhinhos, representantes do Brasil velho e bom. É o único momento em que confessa não ter contido as lágrimas.
No entanto, a visão de Euclides sobre o Brasil e sua população é consistentemente pessimista. Mesmo depois da publicação de "Os Sertões", tal visão não se atenua. Em 1893, fala de um povo sem vigor, brio, sentimento ou espírito, de um povo que, a 15 de novembro, abdicou junto com o imperador. No início de 1897, ainda antes de Canudos, acha ridículo o título de filho de uma terra que tem desmoralizado a história, e em que lamenta ter nascido. Em 1902, depois de Canudos e de "Os Sertões", fala em uma raça liquidada; em 1906, declara seu crescente e assoberbador desprezo pelas coisas do país e, em 1908, confessa considerar uma felicidade poder deixar a gente parasitária que explora nossa famosa natureza ("Carta a Oliveira Lima", 13/11).
Tal desencanto talvez explique, em parte, a obsessão de Euclides com a fuga. Ele se descreve, com frequência, como bandeirante, pioneiro, peregrino, árabe, um Ashverus em perpétuo movimento, em fuga constante para as pequenas cidades, para o sertão, para o deserto (assim ele caracterizava a Amazônia). O fascínio com o sertão está presente desde 1892 ("Carta a Porchat", 26/08/92). À sogra manifesta, em 1894, a vontade de refugiar-se em recanto qualquer de nossos sertões. A João Luís revela, em 1897, o ideal de viver na roça em cidade pequena. Em 1904, confessa a José Veríssimo: "Não desejo a Europa, o boulevard (...) desejo o sertão, a picada malgradada, e a vida afanosa e triste do pioneiro" ("Carta a J. Veríssimo", 07/07). A Amazônia é o deserto bravio e salvador que anseia enfrentar em duelo trágico. Ele parte para o Purus com o mesmo entusiasmo com que os rastaqueras arrumam as malas para viajar a Paris. Em alguns momentos, o desejo de isolamento adquire conotações monacais, e ele fala, então, de tebaidas caipiras, referindo-se a Campanha, em Minas Gerais e a Lorena, em São Paulo.
A fuga para o sertão, por sua vez, liga-se à auto-imagem de urso, de desadaptado à vida urbana das grandes cidades (sobretudo do Rio de Janeiro com sua "deplorável rua do Ouvidor"), incapaz de resolver o simples problema de um laço de gravata. Haveria nele um "ursismo incurável", uma "virtude ferocíssima de monge"("Carta a C. Neto", 07/08/1904). Na mesma linha, aparece com frequência a autodefinição como caboclo, seguida dos adjetivos triste, ladino, teimoso, desconfiado, ou como bugre triste e manso.
A insatisfação com o mundo urbano, litorâneo, oficial, utilitário, politiqueiro, prende-se a uma postura definitivamente romântica perante a vida: "Reivindico, assim, o belo título de último dos românticos, não já do Brasil apenas, mas do mundo todo, nestes tempos utilitários" ("Carta a O. Lima", 25/05/1906). A Nabuco declara-se um "romântico incorrigível" (18/10/1903). Como autêntico romântico, seus sentimentos estão em permanente oscilação entre o idealismo otimista, o pessimismo e a melancolia. Desde 1893, refere-se a oscilações entre o desânimo maior e as maiores esperanças. Em 1895, fala a João Luís de sua vida "incoerente, sulcada de desânimos profundos, agitada de aspirações tumultuosas, iluminada às vezes por esperanças imensas" ("Carta a João Luís", 09/10/95). É impossível não ligar essa autodefinição com a descrição que ele faz dos mestiços em "Os Sertões": "Espíritos fulgurantes, às vezes, mas frágeis, irrequietos, inconstantes".
Euclides confessa ter tentado reprimir seu lado romântico. Admite tentativas de esmagar a idealização romântica com indagações objetivas e estudos positivos, de envolvê-la no cilício dos algarismos. Mas "ela revive-me, cada vez maior, e triunfante" ("Carta a Escobar", 10/04/1908). A engenharia é para ele um meio de vida e um refúgio para os desapontamentos da política e da vida. É a possibilidade de reduzir a visão da vida ao campo estreito do teodolito. Mas ela é um desvio morto de que procura escapar para seguir a "verdadeira estrada" da literatura. Mesmo a ciência, que todos os comentaristas concordam ter tido peso tão forte em seu pensamento, se vê relativizada. Em carta a Coelho Neto (22/11/1903), afirma: "... na minha miserabilíssima e falha ciência sei, positivamente, que há alguma coisa que eu não sei". E o que não sabe, continua, adivinha e sente pelo idealismo e pela "perpétua ânsia do belo".
No entanto, Euclides não se livra do peso da ciência, ou do que acreditava ser a ciência. Nos comentários sobre "Os Sertões", ele evita falar sobre a tese central, declarada na nota preliminar do livro, de que o sertanejo é um retardatário condenado à extinção. Define o livro de modo a corroborar a tese, enfatizando o lado de protesto indignado, de libelo vingador, de defesa dos pobres sertanejos assassinados por uma sociedade pulha, covarde e sanguinária ("Carta a Escobar", 21/04/1902). Ele seria o novo Dante a castigar os desmandos da sociedade. O livro, monstruoso poema de brutalidade e força, teria sido escrito por piedade pelos infelizes sertanejos, dirigia-se mais ao coração dos leitores e seria compreendido sobretudo pelos poetas e pelos bons. Feita a denúncia do crime hediondo, ordenada por seu senso de justiça, Euclides parece manter a crença na incapacidade de sobrevivência do sertanejo ao assalto da civilização.
Permanece, assim, na correspondência, o problema do real impacto da experiência de Canudos sobre Euclides. Durante a redação do livro, em São José do Rio Pardo, ele praticamente interrompe a correspondência. Apenas dez cartas são enviadas nos três anos entre 1898 e 1900. Um ano depois da publicação, em 1903, o número de cartas sobe a 59, atingindo o máximo de 68 em 1904. Há a impressão de que passa por um processo de profunda reformulação de idéias, corroborada pelo contraste entre as imagens do "arraial maldito", anterior à campanha, e a dos infelizes sertanejos, posterior a ela. No entanto, a única mudança detectada em suas posições é a já apontada: o desencanto final com o governo republicano, com o regime, com a política e os políticos. Aparentemente, a possibilidade de o sertanejo vir a ser a rocha viva da raça, capaz de cimentar nossa futura integridade nacional, continua sendo apenas a "arrojada conjectura", mencionada em nota adicionada à primeira edição de "Os Sertões", distante do horizonte previsível.
Sua idéia de nação parece perder-se entre as imagens de um sertão autêntico, mas retrógrado e sem futuro, de um deserto amazônico, desafio e paraíso, mas já perdido, e de uma "civilização pesteada", utilitária e parasitária dos centros urbanos do litoral. Panteísta confesso, ao final da vida a nação parece dissolver-se na natureza. Seus últimos serviços à pátria, de 1905 em diante, foram, coincidentemente, ligados à natureza, ao território nacional, inicialmente demarcando as fronteiras com o Peru, depois desenhando e refazendo mapas de fronteiras no Itamaraty, a pedido do visconde do Rio Branco. Por pouco não voltou à Amazônia, como queria, para a fronteira com a Venezuela ou como fiscal da estrada Madeira-Mamoré.
Cavaleiro andante da honra e da justiça, Euclides nos aparece na correspondência como um cruzado medieval perdido na pecaminosidade dos trópicos. As damas que buscou defender, no entanto, lhe fugiram todas e o levaram à ruína. A República, que primeiro o fascinou, prostituiu-se na mesquinhez e na corrupção; a ciência se tornou uma feiticeira que lhe ocultou, com o véu da teoria racial, a face de seu outro amor, a pátria; a mulher, outrora rival da República, relegada a segundo plano, vingou-se destruindo-lhe o lar e trazendo-lhe a morte prematura. Sintomaticamente, o drama doméstico, que há três anos corroía seu lar, quase não aparece na correspondência. Os mapas do Itamaraty serviam também para fugir à "débâcle" (palavra que repete mais de uma vez) doméstica, uma entre tantas outras.
Salvou-o o gênio artístico que do fundo de tantas "débâcles", como um vulcão das entranhas da terra, fez jorrar a obra imortal.

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