São Paulo, sexta-feira, 11 de abril de 1997
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A tarefa do olhar

CHRISTINA RIZZI

Os dois livros aqui analisados, bonitos e atraentes, pertencem a uma coleção de arte-educação que tem entre suas preocupações a alfabetização artística (visual e literária) de crianças e jovens. A arte é tomada como expressão e cultura, em consonância com as teorias mais contemporâneas a respeito de seu ensino. A discussão nesta área de conhecimento dá-se, atualmente, em torno da proposta triangular, de Ana Mae Barbosa, que postula para a construção do conhecimento em arte a ocorrência da intersecção entre fazer, contextualizar e apreciar. Como se vê, tais ações implicam os domínios da produção artística, da história da arte, da crítica e da estética, respectivamente.
O projeto de arte-educação da Berlindis inclui o acesso a vídeos sobre os artistas; materiais arte-pedagógicos especialmente desenvolvidos para professores; exposições itinerantes; conferências e encontros com artistas.
Difíceis na primeira abordagem, os livros desafiam o leitor ao inter-relacionarem textos e imagens complexos e densos. Eles fogem do esquema habitual de "texto com ilustração", de publicações que geralmente apresentam texto e imagem como confirmação, ampliação ou comentário visual numa relação mais direta ou subordinada. Ultrapassando este obstáculo, a sensação que nos fica é a de uma "estereofonia-multimídia".
É preciso fazer escolhas. Deve-se fazer o caminho do texto ou das imagens? Cada novo olhar propicia um encontro de qualidade, entendimento e prazer. Ficam a riqueza e a concisão, a clareza e a sensibilidade por meio de formas, cores, texturas, contrastes, figuração e abstração.
Em "No Mundo das Nuvens", de Ianelli/Goldin, o texto literário sucedeu o texto visual. Foi escrito, a partir do contato do autor com a produção de Ianelli -17 obras produzidas de 1945 a 1995-, como uma possível e sensível interpretação dessas imagens. A escrita poético-psicanalítica de Alberto Goldin, na verdade, envolve não apenas o mundo das nuvens, mas também das pedras, da paisagem, do vidro, do graveto, da areia, do contato do ser humano consigo e com o outro. É um texto sobre ser, viver e criar. Não se pretende didático, porém é uma "aula" sobre processos e procedimentos de criação artística. Traz também questões como a dificuldade que temos em lidar com as diferenças, com a percepção, a expressão, a realização e a comunicação, com a curiosidade, imaginação, mistério e empatia, com o real e o idealizado, o efêmero e seu registro.
Já o livro de Baravelli/Machado de Assis -27 imagens de Baravelli produzidas de 1979 a 1995 e o conto "Adão e Eva"- é uma aproximação por possíveis isomorfismos às obras de autores tão distantes no tempo. Um abrindo e o outro fechando o século 20. Entretanto, também se pode dizer que estão muito próximos entre si e de todos nós, pois ambos lidam com o que há de essencial no ser humano e em sua relação com a vida: valores, momentos, configurações, relação com a criação do mundo, com o espaço natural e social construído, com o sagrado. Todos estes temas são tratados a partir de linguagens e sintaxes absolutamente singulares, o que propicia uma "pororoca" na fruição estética. São características comuns o domínio perspicaz e sutil da linguagem, a maturidade expressiva elevando ao máximo os recursos sem excessos, o humor, o suspense. Eles nos surpreendem com as articulações construídas, ao inverter a ordem do esperado, do conhecido. Deslocam-nos de uma posição confortável e nos aguçam.
Nas duas obras o texto e a imagem se dão de modo simultâneo e se inter-relacionam. É nossa tarefa, enquanto leitores, descobri-los, compô-los, articulá-los, desmembrá-los e rearticulá-los, construindo e revelando junto com os artistas sentidos estéticos e ontológicos, completando e ampliando o fluxo da criação.
Um prato cheio para todos, crianças e adultos, e para os envolvidos com a arte e seu ensino, pois encontrarão nesses livros múltiplos caminhos para a prática do ensino da arte a partir do texto literário e do texto visual, ou a partir de ambos, interpretando e recriando, como o faz a própria coleção à qual os livros pertencem.

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