São Paulo, sexta-feira, 11 de abril de 1997
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Passageiro, profissão cinegrafista amador

BARBARA GANCIA
COLUNISTA DA FOLHA

Sou do tempo em que os únicos anônimos de renome eram os alcoólatras do AA. Na minha época, dedo-duro levava sabão da professora na frente da classe inteira.
Hoje, tudo mudou. Denúncias anônimas viraram dever, ato de cidadania. E o sucesso no anonimato, que antes era privilégio dos dependentes do álcool, passou a ser prerrogativa dos "voyeurs" da periferia, os cinegrafistas amadores que registram injustiças armados de câmeras de vídeo.
Pois pretendo me adequar aos tempos atuais. Para aderir ao zeitgeist, começarei por trocar minha surrada xereta por uma câmera de vídeo.
Depois, sairei por aí filmando as imagens que o Brasil verá nos telejornais do dia seguinte.
Já esbocei o primeiro roteiro do meu vídeo. E, como sou mais para largadona, não me darei ao trabalho de procurar muito longe. Retratarei nesse registro inicial apenas as coisas que estão ao meu redor.
A primeira cena de meu vídeo será uma homenagem a John Waters, o inventor do odorama, o filme com cheiro: um close do bueiro ao lado da garagem do meu prédio. Há mais de cinco anos o tal esgoto exala uma fragrância que poderia servir de água dentifrícia para Cérbero, que guarda as portas do inferno.
Depois, é só dobrar o quarteirão e esperar na banca de jornal pela chegada do carteiro que serve minha região. Não é que, todo dia, o folgado pára, lê todas as manchetes dos jornais e ainda folheia desde revistas de modelagem a publicações náuticas? Já tentei fazer meu cão honrar sua ancestral tradição e aplicar uma dentada nos fundilhos do vagabundo. Mas Pacheco Pafúncio alega não ter nada a ver com isso, uma vez que não sabe ler nem colar selos em envelopes.
Próxima cena: uma tomada aérea da calçada, para mostrar o campo minado por fezes caninas. Só para constar dos autos, recolho as do Pacheco com um aparelho denominado "caca-dog".
Em seguida, registrarei os depoimentos do Wellington e do Gordo, os meninos que vendem Mentex no farol mais adiante. Sabe os ovos de Páscoa que ganhei de jabá e passei para eles? Foram devorados pelo sujeito que vende pano de prato no mesmo semáforo.
Pois é. Parafraseando o ditado italiano, se cada tapuia tivesse uma câmera na mão, "oh, que bela iluminação!"

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