São Paulo, sexta-feira, 11 de abril de 1997
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Irregular, mas envolvente, 'Ventania' fica a um passo do vôo

NELSON DE SÁ
DA REPORTAGEM LOCAL

Em uma cena de "Ventania", o ator que faz Vicente, um dos três irmãos que concentram o enredo da peça, ajoelha-se na boca do palco e repete a cena conhecida do ator Willem Dafoe em "Platoon", filme dirigido por Oliver Stone.
O sargento "bom" foi deixado para trás pelo sargento "mau", está cercado pelos vietcongues, ergue as mãos para o céu e é metralhado pelas costas.
A dicotomia alegórica (os Estados Unidos divididos entre o bem e o mal, esquerda e direita, na Guerra do Vietnã) era uma das piores coisas do filme, óbvia demais, auto-redentora demais, mas se repete melhorada na peça de Alcides Nogueira, dirigida por Gabriel Villela.
Até onde é possível caracterizar, os irmãos José e Vicente (de José Vicente, autor teatral de "Hoje É Dia de Rock", da virada dos anos 60/70) representam a divisão entre a fé católica brasileira (José, o ator Davi Taiu) e a revolução comportamental daquele período (Vicente, o ator Eriberto Leão).
O primeiro entrega-se à religião, seus ritos e constrangimentos, como ninguém na pequena cidade do interior do Minas. É apaixonadamente fiel a Deus, aos santos, à Virgem.
O segundo, Vicente, é o seu avesso, um músico sensual que interpreta canções do rock da época, de Bob Dylan e outros, entregando-se à sensualidade sem peias.
Entre eles, a irmã cega (Sílvia Buarque), perdida entre um e outro, um pouco como acontece em "Platoon", com um terceiro personagem.
O melhor de "Ventania" é que trata a mesma situação com complexidade maior, com meandros maiores, até pelo enfrentamento entre o barroquismo da direção e a crueza da dramaturgia. (Crueza que não garante virtude, por si só. Falta na peça de Alcides Nogueira um cuidado, uma paixão maior pelas palavras. O texto muitas vezes traz frases que chocam pela ligeireza.)
Não é o universo de imagens de Gabriel Villela, tão conhecido. Ele está presente, sobretudo na cenografia "mineira", mas enfrenta um texto que chega a dizer o seu oposto, a ter o seu oposto como "mensagem", se se pode falar em tal coisa.
A opção é preferencialmente pela sensualidade, não pela repressão, pela contenção religiosa. O contrário também tem a sua justificação. Nem tanto em José, que se deixa levar, afinal, mas sobretudo na avó, que chora o tempo todo, comicamente, pateticamente, mas é também o papel mais caracteristicamente trágico na peça.
É a religiosa mineira, presa em casa, mas que tem o seu momento de redenção quando expõe, por assim dizer, as suas razões.
É também uma espécie de alter ego do diretor. Um belo espetáculo, carregado de cenas emocionantes, extrema tensão individual, mas também humor.
Apesar das atuações memoráveis de Malu Valle (como a mãe cuja sede de escapar das travas religiosas e interioranas marca os três filhos) e outros atores, nos papéis de um Elvis Presley de sonho ou da própria avó, muito se perde na interpretação do que se poderia descrever como o protagonista da peça, Vicente.
Eriberto Leão pode não cantar mal, mas não interpreta. Assim como nos musicais da entrada dos anos 90, "Blue Jeans", "Splish Splash", parece ter sido levado ao papel antes pelos músculos do que pelo talento ou experiência. Impregna a peça de amadorismo.
Poderia talvez ter sido mais dirigido na interpretação, mas aí já é especulação. Em cena, é também quem não permite que "Ventania", espetáculo irregular mas envolvente, alcance o vôo que está sempre a um passo de levantar.
(NS)

Peça: Ventania
Onde: Tom Brasil (r. das Olimpíadas, 66, tel. 011/820-2326, Vila Olímpia)
Quando: sex e sáb, às 22h; dom, às 19h
Quanto: R$ 15 a R$ 40

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