São Paulo, sábado, 12 de abril de 1997
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Gil dá nó em si ao aderir a clichês tecnológicos

FERNANDO DE BARROS E SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Uma verdadeira operação de guerra cercou o lançamento do mais recente CD do cantor e compositor Gilberto Gil - "Quanta", cujo show homônimo fez sua estréia no palco anteontem à noite, no Palace, em São Paulo.
Só a Folha dedicou, em dois dias consecutivos, quatro páginas da Ilustrada ao duplo lançamento, um espaço que só se costuma destinar a algumas vacas sagradas da cena internacional quando pousam por aqui, menos pelo reconhecimento de sua relevância cultural e muito mais pelo impacto comercial e histeria coletiva que costumam provocar.
Alarde
Não foi o caso de Gil. O alarde antecipado em torno de "Quanta" se justificou pelo fato de que se trataria de uma obra-prima, que, além de quebrar um jejum de cinco anos, desde o lançamento de "Parabolicamará", seria uma espécie de síntese da sua carreira.
Uma obra "conceitual", que, investigando, como ele próprio resumiu, "as interfaces da ciência com a filosofia, a religião e a arte", estaria passando a limpo mais de trinta anos de atividade musical.
Diante da expectativa criada, o show de estréia frustrou. Não por ele, Gil, que está mais sereno e exuberante do que nunca.
No meio de um cenário em que se destacam duas peças suspensas imitando estruturas moleculares, vestido em trajes brancos, calça pantalona, sandália de couro, Gil continua adorável como sempre, cativando o público com uma atitude generosa, uma indulgência tão grande que lembra um pouco a aceitação que as mães têm da vida.
O que compromete "Quanta" é o próprio CD, que, ao contrário do que se disse, está aquém da maioria de seus trabalhos anteriores.
Não foi por acaso que o público, repleto de convidados, só explodiu de vibração diante de canções antigas, como "Refavela", de 77, e a obra-prima, agora sim, que é "Pai e Mãe", de "Refazenda" (75).
Mas quem deu a tônica do show foi o novo trabalho. E aí, apesar de alguns bons momentos, como "Vendedor de Caranguejo", "Estrela" e "Pílula de Alho", "Quanta" se mostrou um problema.
Técnica
A tendência do culto à técnica, a euforia apressada que Gil manifestou em vários momentos de sua carreira em relação aos modismos mais duvidosos, sempre dando a entender que estava apostando no aspecto progressista e libertário da última novidade - tudo isso ressurge com força em "Quanta".
Mas dessa vez a adesão ao efêmero vem acompanhada por um sopro de eternidade, por uma vontade expressa de conciliar o que é passageiro com um mundo ancestral, imune ao tempo, em que a ilusão humana cederia lugar a uma verdade anterior, circular, de fundo religioso.
É essa combinação, que lembra à sua maneira a justaposição tropicalista entre o moderno e o arcaico, o rural e o urbano, que se torna problemática.
Isso porque, se lá, no tropicalismo, o contraste se resolvia na forma do absurdo, do choque grotesco que fazia as vezes de alegoria do país, agora Gil age como se tivesse resolvendo uma equação cósmica. O resultado é genérico, frio, sem tensão interna.
Fica a sensação de que o compositor entrou numa camisa de força, que se enroscou numa teia de conceitos metafísicos e não sabe se discute "o mistério eterno da vida" ou se fala bobagens na internet. Gil dá um nó em si mesmo ao aderir com fervor religioso aos clichês tecnológicos da sua época.

Show: Quanta
Quando: hoje, 22h, e amanhã, 20h
Onde: Palace (av. dos Jamaris, 213, Moema, tel. 011/531-4900)
Quanto: R$ 20 a R$ 50

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