São Paulo, terça-feira, 15 de abril de 1997
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As elites, a fotografia da fome e o neto mulato

MARILENE FELINTO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

As fotografias da fome no Zaire estampadas nos jornais apaziguam as elites ricas de maneira tal que um texto não faria. A fotografia é menos subversiva do que o texto: dá uma estetizada na barbárie africana, sem tirar-lhe a expressão. Plastifica, encobre o cheiro do mijo, o amargor da boca, a vista turva, o delírio dos miolos, a secura da pele preta que veste o saco de ossos dos mortos pela fome.
No enquadramento preto-e-branco da foto -e sob a chancela de um fotógrafo famoso como Sebastião Salgado-, as fotografias ampliadas da atual revolução brasileira nos campos, dos sem-terra e suas invasões e acampamentos, viram "documento" ou "arte", como se queira, e descem pela goela da burguesia como manteiga se espalha pelo pão quente.
Burguesia aqui tem a pior acepção do termo: aquele grupo de indivíduos sem elevação ou largueza de idéias, apegado a valores materiais, a hábitos e tradições convencionais. E também a minoria poderosa, cínica e dominante.
Não se discute a qualidade da obra de Salgado. Mas é bem discutível o uso que se faz dela na mídia -publica-se como um espetáculo, uma festa em que o centro das atenções não é nem os negros nem os sem-terra, mas o "tratamento" que o fotógrafo deu a ambos.
Claro que é da natureza da fotografia esse papel de neutralidade. Sempre que se quer ser "neutro, objetivo", tenta-se copiar minuciosamente o real, diz Roland Barthes, como se o analógico fosse um fator de resistência ao investimento dos valores. Ou seja, como toda fotografia é, em primeira instância, um análogo mecânico do real (a cópia fiel), é difícil acrescentar uma segunda mensagem (ideológica) à mensagem que ela veicula.
Claro também que a segunda mensagem existe -porque a cópia nunca é o real. Mas ainda assim fotografia implica silêncio, contemplação, (que se opõe ao querer-viver e se afasta das paixões da vida.) É mensagem sem código, que cala, "suspende a linguagem e bloqueia a significação".
A hipocrisia das elites utiliza a seu favor (em coquetéis e vernissages) esse paradoxo em que se funda a fotografia -a mais social e reacionária das estruturas de informação, pois não transforma nada em mito -nem os sem-terra, nem os esqueletos da África.
Sobre as imagens traumáticas, Barthes diz: quanto mais o trauma é direto, mais a cono tação é difícil. O efeito "mitológico" de uma fotografia é inversamente proporcional ao seu efeito traumático.
*
A atitude do compositor Chico Buarque e sua mulher, que vão processar por crime de racismo um jornalista que teria chamado de "mulatinho beiçudo" o neto deles, é absurda.
Um mulato com sangue branco Buarque de Holanda, não pode ser dito mulato? Ninguém no Brasil se ofende por ser descrito como mulato: beiçudos, sim, todos nós.
Aposto que todas as empregadas negras que passaram pela vida de Chico Buarque já foram chamadas de "negrinha fedida". Mas nem por isso ele processou ninguém.

E-mailmfelinto@uol.com.br

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