São Paulo, quarta-feira, 16 de abril de 1997
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Hilda Hilst

MAURICIO STYCER
DA REPORTAGEM LOCAL

Vida, morte, loucura. Deus, sexo, envelhecimento. Com os temas e a força de sempre, a escritora Hilda Hilst está de volta. "Estar Sendo. Ter Sido", seu 30º livro em 47 anos de carreira, está chegando às livrarias e marca a estréia de uma nova editora, a Nankin.
Aos 65 anos, Vittorio, o personagem principal do livro, faz um balanço de sua vida e se diverte imaginando loucas receitas de drinques e de maneiras de se suicidar.
Como a escritora, que na próxima segunda-feira completa 67 anos, Vittorio vê a vida preferencialmente pela ótica do escárnio e do humor negro, alternando momentos de profunda amargura com instantes de graça e felicidade.
"As coisas são sempre as mesmas. Se ainda tivesse um cadáver por aqui, talvez o dia de hoje sorrise se achássemos um cadáver por aqui", observa Vittorio, na página de abertura da narrativa.
Tábua etrusca
Vivendo desde a década de 50 isolada na Casa do Sol, uma chácara a 11 km de Campinas, Hilda Hilst enfrenta há anos o drama da falta de reconhecimento.
"Fiquei marcada como uma escritora difícil, medonha de difícil. Imagine que uma crítica, que não entendia nada do que eu escrevia, chegou a dizer que eu era uma tábua etrusca", conta, rindo.
Como se julga incompreendida pela crítica e não é lida pelo grande público, a escritora perdeu totalmente o pudor de julgar, ela mesma, a sua própria obra.
"Eu fiz um excelente trabalho, de primeira qualidade. Sou meio megalômana, mesmo. Não entendo nada de teoria literária, mas sinto que o que escrevo é bom. Desde o início, eu sentia que ia ser um grande poeta", diz.
A irritação com a falta de sucesso levou Hilda Hilst a um gesto radical. Em 1990, ela publicou "O Caderno Rosa de Lori Lamby", um livro abertamente pornográfico. No embalo, em 91, lançou outros dois eróticos, "Contos d'Escárnio" e "Cartas de um Sedutor".
A trilogia fez barulho. Os amigos chegaram a ficar preocupados, os críticos torceram o nariz, mas o fato é que os repórteres finalmente fizeram fila à porta de sua casa.
Para felicidade de Hilda Hilst, a repercussão da trilogia erótica alcançou a França. Em 94, uma tradução de "Contos d'Escárnio" ("Contes Sarcastiques") foi publicada com o selo da L'Arpenteur, uma divisão da mítica Gallimard.
Como uma coisa puxa a outra, um repórter do jornal francês "Libération" foi entrevistá-la em sua casa. "Fiquei besta quando o Mathieu Lindon, do 'Libération', veio aqui. Perguntei: 'O sr. veio aqui só para me ver?' E ele: 'Parfaitement, madame'. Fiquei besta. Porque ninguém me lê mesmo".
No ano passado, Hilda Hilst voltou a sorrir. Saiu na França uma tradução de "A Obscena Senhora D", feita por Maryvonne Lapouge, a mesma que verteu "Grande Sertão: Veredas", de Guimarães Rosa.
Mas a felicidade da escritora é volátil. Ela teme, no futuro, ser reconhecida apenas como uma pornógrafa -"como Bocage, que foi deslumbrante e só lembram do Bocage sacana".
Depois da trilogia erótica, Hilda Hilst publicou a narrativa "Rútilo Nada" (prêmio Jabuti, em 93) e os poemas "Cantares do Sem Nome e de Partidas" (95).
Agora, "Estar Sendo. Ter Sido", no qual o personagem Vittorio revela que jamais poderia se matar com um tiro na têmpora. Porque treme. "Os que têm Parkinson evitem essa solução", ele diz.
"Suicídio, Modo de Usar"
"Estudei muito esse livro, 'Suicídio, Modo de Usar'. Sou tão goiaba para essas coisas. Acho que não é mesmo para me matar. Tenho medo do tiro e daria muito trabalho tomar 30 comprimidos", conta Hilda, com naturalidade.
"Este novo livro ('Estar Sendo. Ter Sido') tem a ver com a luta contra tudo, a loucura, o medo da loucura... Quando você fica realmente louca, você se afasta totalmente da criatividade. Nunca me passou pela cabeça que estou louca", diz a escritora.
A loucura é um tema com o qual ela convive desde a infância. Seu pai, o poeta Apolônio de Almeida Prado Hilst, "começou a fazer coisas esquisitas aos 36 anos" e foi internado num sanatório, onde morreu, aos 69 anos.
"Meu pai era um homem lindo, e vi esse homem lindo completamente louco". Hilda Hilst adora falar do pai. "Dizem que tenho esse nome, Hilda, por causa de uma mulher que se apaixonou perdidamente por ele e se matou".
Também conta que o pai, irritado ao saber da gravidez da mulher, Bedecilda, se isolou numa fazenda da família, no interior de São Paulo. Ao ser informado de que a criança que nascera era uma menina (Hilda), disse: "Que azar".
"Ele era ótimo, muito irônico. Claro que é um azar ter uma filha. Ele era tão divertido, cheio de humor", diz Hilda.
Depois de quase três anos trabalhando no texto de "Estar Sendo. Ter Sido", Hilda agora quer se dedicar a leituras e a um velho projeto, a transformação da casa onde vive numa fundação para estudos de fenômenos psíquicos.
A escritora se diz convencida de que "a imortalidade foi descoberta". Empolga-se quando fala do assunto: "Nunca acreditei que fosse só isso: nascimento, vida, morte e apodrecimento".
Hilda conta que vem se informando sobre o tema por meio de leituras heterodoxas, sobre espiritismo e coisas do gênero. Aparentando muita segurança, discursa sobre Marduk, um suposto planeta, "fora do espaço e do tempo", onde se pratica a imortalidade.
"Julio Verne mora em Marduk. Einstein também. Quero demais ir para lá. Eles estão mandando fotografias de Marduk, das casas ondem moram. Julio Verne manda as fotos pelo fax, desligado", diz.
"Não tenho medo de falar essas coisas. Já me chamaram de tantas coisas, que sou louca varrida... Não me importo se agora me chamarem de louca, de prostituta, do que quiserem".
Poemas de partida
Outro assunto que Hilda Hilst adora é poesia. Ela ganhou recentemente o título de cidadã campineira e decidiu que, na festa de entrega da homenagem, lerá um poema, que começa assim: "Como se te perdesse, assim te quero".
"Sempre que você está indo embora, não falo necessariamente de morrer, você pode ficar no coração do outro. Quando você usufrui do outro completamente, e o outro de você, a coisa acaba sendo esquecida. É melhor ficar o desejo, sempre", filosofa.
Hilda Hilst conversou muito sobre poesia com Carlos Drummond de Andrade (1902-1987). Em 1952, Drummond dedicou a Hilda um poema insinuante, no qual diz: "Esclareçamos o assunto:/ Nada de beijo postal./ No Distrito Federal,/ o beijo é na boca -e junto."
Hilda assegura que esse beijo jamais foi dado. "Drummond tinha uma doçura muito especial e uma timidez que constrangia o outro. Ele só falava por metáforas. Nunca namoramos. Ele passeava comigo na calçada de Copacabana".
Numa das últimas vezes que se encontraram, em meados dos anos 70, Hilda havia acabado de publicar os poemas de "Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão", e Drummmond disse: "Você não dormiu com esse cara. Os poemas estão tão bons que eu sei que você não dormiu com ele". "É verdade", respondeu Hilda.

Obra: Estar Sendo. Ter Sido
Autora: Hilda Hilst
Quanto: R$ 18 (128 págs.)

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