São Paulo, quarta-feira, 16 de abril de 1997
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"Paixão" de J.S. Bach brilha com Herreweghe

MARCELO MUSA CAVALLARI
DA REDAÇÃO

"A Paixão Segundo São João", de Johan Sebastian Bach, na interpretação de Philippe Herreweghe e seu Colegium Vocale brilha por sua dimensão humana. Humilde e comunitariamente humana.
A peça tem, por si só, essa origem. "A Paixão" é a narrativa da prisão, condenação, morte e sepultamento de Jesus. Segue a estrutura litúrgica tradicional de dar as partes do evangelista, de Jesus e de alguns personagens para cantores solistas, enquanto o coro fica com as falas coletivas.
Árias e corais com textos escritos para a peça comentam passagens e fazem, de certa forma, o papel de uma pregação cantada. A música foi feita para ser tocada na Igreja Luterana. É parte da liturgia da Paixão. A comunidade que ouve a Paixão sabe que festejará, em poucos dias, a ressurreição de Cristo. A música de Bach sabe disso.
Com o caráter retórico que caracteriza a música vocal do barroco, Bach move o ouvinte para a interiorização dos significados da Paixão e da espera da Páscoa.
Não numa interpretação pessoal -descabida na ótica de um artista do barroco-, mas dentro do quadro da visão luterana, que é aquela em que Bach se movimenta.
Assim, a peça não é um drama litúrgico, propriamente dito. Não tem um final dramático, mas um suave e recolhido apelo pela volta de Jesus. A música não se pretende como uma experiência completa. Apela para a continuidade do ano litúrgico e, evidentemente, da vida. Fora da sala.
Os instrumentos antigos -flautas de madeira, cordas de tripa, de sonoridade menos potente-, o coro pequeno e as vozes sem impostação lírica da interpretação do Collegium fazem soar tudo isso. Tudo tem um som de madeira. Não há mesmo nenhum instrumento de metal. Nem os tubos do órgão. As vozes, mesmo as solistas, soam com a fragilidade de uma voz que diríamos comum. Apenas que está cantando. Não há prodígios. Há gente fazendo música.
O coro, propriamente dito, soa assustadoramente claro e preciso. Movimentando-se numa gama de amplitude restrita, não há nunca as explosões em fortíssimo que outras versões da Paixão exploram. A palavra guia toda a interpretação.
Até a preocupação com a dicção leva a resultados imprevistos, como o caráter percussivo da repetição da frase "Bist Du Nicht" nas várias entradas das vozes do coro.
Werreweghe rege mesmo como maestro de coro, mais do que de orquestra. Seus gestos são de maestro de coro. Às vezes chega a esquecer a batuta entre o polegar e a palma da mão para usar os dedos, cacoete de quem normalmente rege só com as mãos.
Dá para, com algum esforço, imaginar-se em uma igreja luterana da Alemanha do 18. Até com a colaboração do barítono Jonathan Brown, que, terminada sua parte, humana e comunitariamente dormiu, sentado a um canto do palco.

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