São Paulo, quinta-feira, 17 de abril de 1997
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Entre o discurso e a realidade

JOSÉ RAINHA JUNIOR

Todos são favoráveis à reforma agrária. Até os governos e latifundiários a defendem. Desde que não modifique a estrutura fundiária, e que os trabalhadores rurais aguardem pacientemente os atos de boa vontade. Assim vem a novela desde 1850, com a primeira Lei de Terras.
Mas basta os trabalhadores rurais se organizarem e pressionarem o governo para que o mundo desabe: "São radicais, estão querendo desestabilizar o governo, são manipulados por partidos com outros interesses, é um movimento político, 'primitivo'..."
Já os mais "modernos", preocupados em ocupar espaços na mídia, procuram incriminar as organizações dos trabalhadores e prender suas lideranças. São todos a favor da reforma agrária, desde que ela não seja feita.
Recentemente, aqui na Folha, o presidente disse que, "numa democracia, ou as pessoas se comportam democraticamente ou ficam isoladas". Isso dá a entender que, para este presidente, comportar-se democraticamente significa concordar com todas as ações do governo ou ficar quieto.
E qual deve ser o comportamento democrático de um presidente? Mudar a Constituição para atender seus interesses pessoais? Temer os plebiscitos ou referendos populares? Aniquilar a qualquer custo as oposições? Utilizar-se de seu poderio na mídia para fazer propaganda enganosa? Será que um presidente que procura, por meio de negociatas e troca de favores, fazer do Congresso Nacional um apêndice do Poder Executivo está se comportando democraticamente? Não corre risco de isolar-se em seu palácio?
O ministro da Política Fundiária, Raul Jungmann, pode aparecer para a imprensa como competente e esforçado. Mas para a família que está acampada há mais de dois anos, vivendo debaixo de uma lona preta, em péssimas condições de vida, ele será um falastrão e incompetente. Por isso, essa família não hesita em levantar o acampamento, reocupar a fazenda ou prédio público ou caminhar 1.000 km até Brasília.
Já é hora de este governo perceber que há uma grande diferença entre o que ele diz e faz e o que a sociedade espera que ele realmente faça. E, à medida que essa diferença se aprofunda, é natural que a população reaja, indo para as ruas em mobilizações populares para protestar.
Os companheiros que participam da Marcha Nacional por Reforma Agrária, Emprego e Justiça caminharam 1.000 km até Brasília (DF), saindo de três pontos diferentes do país.
Ela é uma reação à política neoliberal do governo FHC. Ao contrário do que se tem dito, pouco tem sido feito em termos de reforma agrária por este governo. O número de famílias assentadas tem sido maquiado. Basta olhar a execução orçamentária do Incra, em 1996, para comprovar que o governo não assentou o número de famílias que diz ter assentado naquele ano.
Dizer que desapropriou 4 milhões de hectares não significa que já se imitiu na posse dessa terra e que ela está à disposição para as famílias serem assentadas. E muito menos que as terras sejam aptas para a agricultura, uma vez que as negociatas com os latifundiários acontecem com grande facilidade.
Quando não há coerência entre o discurso e a prática, só resta aos trabalhadores o caminho da mobilização e da pressão sobre o governo. É isso o que as elites fazem quando querem ser atendidas. As caravanas a Brasília feitas pelos empresários -não caminhando, mas de jatinho- não têm a finalidade de pressionar o governo e o Congresso? Os outdoors ou anúncios pagos em rede de TV e rádio não procuram convencer a sociedade das propostas defendidas pelos empresários e banqueiros?
Nós, que não temos nem dinheiro nem acesso a esses meios, fazemos essa pressão por meio de atos públicos. Pode ser uma forma mais primitiva, mas é a alternativa que nos resta.
Por último, reafirmamos ao senhor presidente e aos ministros da Justiça e da Política Fundiária que temos direito a trabalho, comida, moradia e ao exercício da cidadania. Por isso, iremos lutar com todas as forças para que esses direitos nos sejam assegurados.
Lutaremos pela reforma agrária e contra a política neoliberal. Essa luta significa o fortalecimento da democracia e não o contrário, como esses senhores têm afirmado. E, se para garantir esses direitos for necessário pressionar o governo com ocupações de fazendas improdutivas ou de prédios públicos, certamente os trabalhadores rurais sem terra continuarão essas ações.

José Rainha Júnior, 38, é agricultor e membro da Direção Nacional do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra).

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