São Paulo, domingo, 20 de abril de 1997
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A profecia desmentida

PIERRE SANCHIS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Acaba sendo repetitiva a constatação de certo fracasso prospectivo das teorias da secularização. O mundo moderno, crescentemente racionalizado, burocratizado e entregue a uma multiplicidade de instâncias reguladoras eficazmente engrenadas entre si, não poderia mais abrir espaço para um fenômeno irracional, cuja eficácia prescindia de uma causalidade logicamente inteligível e cujas instâncias administradoras -as igrejas- pretendiam um poder de alcance social universal.
As impressões contemporâneas parecem -até dramaticamente- não confirmar semelhante profecia.
Deveremos então falar de uma volta triunfante da religião? Deveremos, ao contrário, negar que a onda crescente que invade espaços sociais e consciências seja de caráter religioso? Muito provavelmente seja mais realista dizer que esta dimensão é, de fato, "religiosa", mas que a própria "religião" não representa, no decorrer dos séculos, uma realidade social homogênea e constante nas suas formas e suas funções. A modernidade não expulsou nem suprimiu a religião, mas amoldou-a em parte à sua imagem e semelhança.
Comecemos pela mudança mais notável, quase que radical: destituída da situação que ocupava no ponto de convergência das linhas da arquitetura social, a religião perdeu sua função primordial, que era permitir ao sistema como um todo ser vivido como prenhe de sentido. As consciências individuais, e sobretudo aquilo que era considerado como matriz e resultante coletiva de sua sinergia, a consciência do grupo, sabiam, por meio dela e do universo simbólico que segregava, o porquê, o para quê, o para onde a vida encaminhava todos e cada um.
Um corpo de valores, unanimemente compartilhado -importando menos que seja, de fato, respeitado- acabava de compor o mapa onde cada grupo fazia a leitura de sua posição e de seu caminhar. Mas os tempos foram. Outra instância globalizadora, o Estado, veio desbancar a religião do seu papel totalizante, antes de ser ela própria desafiada por um sem-número de referências, institucionais ou não, cujo entrelaçar constitui a chamada "sociedade civil". No meio destas referências, as religiões, externamente multiplicadas e internamente fragmentadas, competem entre si para conservar sua função de doadoras de sentido.
Ou para reativar esta função. Mas de jeito nenhum numa simples restauração de sua posição antiga. Religiões, agora, são muitas. Juntas, elas compõem um campo dinâmico, disputando o espaço, em superfície das adesões, em profundidade das convicções e orientações valorativas. Seria, então, o tão falado "mercado religioso", em que as instituições reguladoras do sobrenatural feito vida social apresentariam à escolha dos consumidores seus produtos prontos e acabados? Pensou-se um tempo que a metáfora poderia dar conta da nova situação. Mas rapidamente a mudança revelou-se mais radical ainda.
Não se trata, para o homem moderno, de escolher simplesmente, livre e autonomamente, o rótulo institucional que mais lhe parece convir com suas aspirações, seus ideais de vida, suas necessidades, mas de operar, no meio desta Feira Mística, transformada, à revelia das religiões tradicionais, em "marché aux puces" (mercado de pulgas) sobrenatural, a montagem de seu próprio universo simbólico. Operação de reconstrução aleatória, ao sabor dos encontros, das leituras, das experiências, eufóricas ou sofridas, das epifanias ocasionais. Muitas vezes, simples somatório abrigado por uma referência institucional, outras vezes verdadeira "bricolage" que obedece à direção de um eixo organizador: o reencontro com a natureza, a autenticidade do "self", a conjunção com a totalidade, social e cósmica. Mas sempre num trabalho perto da concretude, corpo e matéria, mesmo se este concreto imediato é vivido como habitado por uma terceira dimensão: mundo muito real, mas encantado. O campo religioso, afinal, não é mais simplesmente o campo das religiões.
Nesta flexão contemporânea do seu modelo, a religião parece-nos cumprir três funções, entrelaçadas e articuladas dos modos mais variados, e sobretudo desigualmente presentes nos casos particulares.
Criar sentido continua parecendo, para o observador contemporâneo, a função mais nobre da religião. Ela diz a natureza e o valor das coisas, revelando, no fundo, as verdades perdidas pelo meios de conhecimento e avaliação mais diretamente racionais. Não competindo necessariamente com eles, mas indo além, num território só atingido pela flechas de sentido do simbólico, que ela se especializou em manobrar. Um sentido que, doravante, vale só para cada um e para cada momento, tendo que passar pelo crivo mutante da sensibilidade espiritual individual; mas, em compensação, um sentido que pretende ser, para as consciências, a epifania do mais verdadeiro e íntimo do ser ser.
Criar soluções parece uma função mais imediata, utilitária e redutiva para as religiões. Todas, no entanto -ou pelo menos alguns segmentos de todas elas-, submetem-se a esta necessidade do homem contemporâneo. Necessidade de pobres, em países do Terceiro Mundo, que não têm à mão os meios técnicos para resolver seus problemas existenciais? Não só, ao que parece. Tudo indica, ao contrário, que a concepção contemporânea destas necessidades do homem, concepção globalizante, em que saúde, equilíbrio econômico, autenticidade espiritual e felicidade se articulam holisticamente, colocam-nas, para muitas consciências, fora do alcance exclusivo destes meios, quando meramente considerados ao nível de sua disponibilidade material e de sua eficácia técnica. Introduz-se então uma religião do cotidiano, próxima à magia e que, no limite, transforma em cliente o fiel.
Criar identidades, enfim, antiga função que a religião contemporânea não abandona. Em princípio, identidades menos totalizantes e rígidas, que proporcionam abertura para o futuro, porosidade, eventualmente trânsito, sempre diálogo construtivo. O universo social, não mais colado a universos simbólicos unitários, seria feito doravante desta trama múltipla. Os exemplos são mil, sobretudo talvez em espaços sociais populares, de trocas religiosas tranquilas, que podem até escapar das vigilâncias institucionais. Mas é aqui que nosso raciocínio volta a seu ponto de partida.
Por individual que seja, esta procura de sentido e de soluções, para ser vivenciada como "religiosa", parece ter tendência a se referir, nem que seja informal e só preferencialmente, senão sempre, a uma instituição, pelo menos a uma tradição, uma família de espíritos, um fluxo místico que atravesse os tempos e os espaços. Assim toma consciência de sua seriedade e legitimidade, mesmo se para isso tenha que procurar o seu "label" identificador em tradições exóticas e, para sua própria sociedade, novas. Ora, acontece que este impulso identificador reveste-se às vezes da mesma rigidez que lhe conferia, outrora, a consciência de ser o único legítimo. No interior das mesmas sociedades globais podemos então assistir a ameaças de discórdias religiosas graves. E, sobretudo, quando a maioria dos membros de uma destas sociedades globais -nação, etnia, província- tende a identificar-se com e por intermédio de uma determinada religião e, em nome desta diferença, reivindica como exclusivo o seu espaço, estão próximas as violências que sempre caracterizaram as guerras de religião. Exemplos atuais são bem conhecidos.
Isto é dizer que as mudanças detectadas nas modalidades da "religião" no mundo contemporâneo não constituem somente uma constatação, mas também um programa. Pois um dos problemas fundamentais que nosso mundo deve enfrentar, o problema do gerenciamento, positivo, mas pacífico, das identidades, passa também pelo perfil que saberão se conferir a si próprias "as religiões".

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