São Paulo, domingo, 20 de abril de 1997
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As armas da ironia

ADÉLIA BEZERRA DE MENESES
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Do chão sabemos que se levantam as searas e as árvores, levantam-se os animais que correm os campos ou voam por cima deles, levantam-se os homens e as suas esperanças. Também do chão pode levantar-se um livro, como uma espiga de trigo ou uma flor brava. Ou uma ave. Ou uma bandeira."
José Saramago no livro "Levantado do Chão"
Também do chão pode levantar-se uma canção, eu diria, parodiando Saramago -uma canção que diga da falta de chão, da falta de terra para quem dela viveria, da sua carência, do oco e do desarrazoado que isso representa. É esse o assunto de "Levantados do Chão", a mais recente canção de Chico Buarque, tematizando os "sem-terra", constante do CD que acompanha o livro de fotografias de Sebastião Salgado, "Terra", lançado pela Companhia das Letras no dia 17 de abril -às vésperas do aniversário do massacre em Eldorado dos Carajás: também do chão pode levantar-se uma bandeira.
Estruturada formalmente por interrogações reiteradas, que expressam velada indignação e recusa, a letra dessa canção coloca, em sua radicalidade, a questão do desarraigamento, do desenraizamento, do "desassentamento" -e do seu absurdo. Há que se meditar sobre o valor afetivo de uma entonação interrogativa. Perguntar é estranhar, recusar, impugnar: questionar. É não aceitar algo como um dado de fato.
O estranhamento sustentado se decompõe em perguntas -calmas invectivas- que vão do acúmulo de advérbios interrogativos ("Como então?", "Como assim?", "Mas como?"), passando pela aposição de frases nominais interrogativas ("Desgarrados da terra?", "Levantados do chão?") à sequência final de termos isolados que, escandidos pelo sinal de interrogação, apontam para o seu avesso: "Gomo? Sumo? Granizo? Maná?". No entanto, se o tom é quase meditativo ("Como embaixo dos pés uma terra/ Como água escorrendo da mão"), a emoção não é menos contida, engendrando frases escandidas, curtas, numa gradação de compassada ironia.
Num único caso -"Que esquisita lavoura!"- se sobrepõe à interrogação a exclamação, apontando para sua origem comum: "ironia". Com efeito, é essa a figura de estilo dominante nesta canção. E sabemos o quanto a ironia é linguagem de denúncia e de não-adesão, é linguagem de resistência. "Ironia": do grego "eironein" = ação de interrogar, fingindo ignorância, ou que diz menos do que aquilo que se pensa. Forma privilegiada do exercício da crítica social, no avesso da duplicação das ideologias dominantes, a ironia é arma de combate. Nessa "ação de interrogar, fingindo ignorância" se chega, inevitavelmente, ao cômico de algumas imagens, concentradas sobretudo nas duas últimas estrofes: "boi alado", "levitante colono", "celeste curral", "rebanho nas nuvens" etc.
Penso nos filósofos pré-socráticos, em sua classificação dos elementos primordiais do universo: terra, água, ar e fogo. Pois bem, nesse texto sobre a falta da TERRA, as demais matérias fundamentais vão, perturbadamente, assumir o seu lugar, substituindo-a. É assim que, por volta da metade da canção, as imagens falarão de ÁGUA em vez de terra ("como água escorrendo da mão", "como água na palma da mão"); mas, depois de uma transição em que a água se mistura à terra ("lama sem fundo"), passa-se ao "ar".
A partir da quarta estrofe, instaura-se esse elemento, também inicialmente misturado à terra faltante, em forma de "pó": "Como em cama de pó se deitar" (verso 14). A falta de apoio, de concretude, de solidez, de fundamento -que só a terra, a mais concreta e a única sólida dentre as matérias fundamentais, poderia propiciar- regerá a orquestração das imagens, até o fim. É importante observar que já antes o "ar" estava presente, por meio da alusão à queda "no oco da terra" (verso 8). Mas será sobretudo a partir do verso 15 que, à falta da terra, o "ar" se imporá como imagética fundamental (1). E aí se desdobrarão as metáforas que traduzem a carência aguda, absoluta, de qualquer fundamento sólido: "Num balanço de rede sem rede/ Ver o mundo de pernas pro ar".
A imagem é rica e condensada: não só porque diz da ausência de apoio, mas porque, num outro plano, alude à falta de "fundamento ético" para a situação, configurando um mundo "de pernas pro ar", mundo às avessas, dolorosamente anômalo, aético, injusto. E, a partir daí, se desatará a ironia: "Como assim? Levitante colono?/ Pasto aéreo? Celeste curral?/ Um rebanho nas nuvens? Mas como?/ Boi alado? Alazão sideral?" (2).
Anomalia, desacerto, desconcerto. O homem do campo não tem terra. O desajuste da sociedade se revela no nível da linguagem, contamina as palavras, leva à incongruência das imagens, que remetem ao absurdo. O desenraizamento fere fundo: "Que esquisita lavoura! Mas como?/ Um arado no espaço? Será?/ Choverá que laranja? Que pomo?/ Gomo? Sumo? Granizo? Maná?".
Com "maná" -alusão ao alimento caído dos céus, e não brotando da terra, fruto do trabalho do homem- a inversão irônica está completa.
Falei que essa canção que tematiza a terra, ou melhor, a sua falta, opera com os elementos primordiais do universo, as matérias fundamentais: a terra, presente mesmo por sua ausência; a água e o ar, que perversamente ocupam o seu lugar. E o fogo? Saindo do universo dos filósofos físicos e caindo na realidade dura e crua dos conflitos de terra, do massacre em Eldorado dos Carajás, dos conflitos no Pontal do Paranapanema, da UDR, dos grileiros e ruralistas, das ameaças que pairam sinistras, da Marcha dos Sem-Terra e do susto suspenso com que a cada dia abrimos os jornais, o fogo, num trocadilho de mau gosto, mas dolorosamente na linha dum horizonte possível e temido, bem, o FOGO é o risco.
Finalmente, algo que ficou faltando, nessa análise da letra de "Levantados do Chão". Refiro-me às duas referências oníricas da segunda estrofe, falando de esforço baldado e impotência -e que remetem a sonhos de angústia, ou melhor, ao pesadelo no qual não se consegue avançar, ou em que se cai, num tombo abissal: "Como em sonho correr numa estrada/ Deslizando no mesmo lugar/ Como em sonho perder a passada/ E no oco da terra tombar".
A geração que tinha por volta de 20 anos na década de 60, quando empunhava com paixão e veemência a bandeira da "reforma agrária", identifica-se sobremaneira com esse pesadelo de paralisia e impotência. Será que também na geração dos nossos filhos o Brasil vai "perder a passada"?
Notas:
1. É evidente que aludo aqui a Gaston Bachelard e a seus estudos sobre a imaginação poética, regida pelos quatro elementos fundamentais.
2. Importa observar que esse topos do ar substituindo a terra, quando se trata de propriedades rurais, tem uma tradição na literatura brasileira que remonta a Carlos Drummond de Andrade. Indagado sobre de onde vem o título "Fazendeiro do Ar" de um de seus livros, eis a resposta que ele dá: "Os meus antepassados, inclusive meu bisavô, meu avô e meu pai, foram todos fazendeiros em Minas: quando chegou a minha vez, a fazenda havia acabado. Assim, sem terra, considero-me fazendeiro do ar... daí o título" ("Fortuna Crítica de Carlos Drummond de Andrade", Civilização Brasileira, 2ª ed., 1978).

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