São Paulo, terça-feira, 22 de abril de 1997
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Fantasias de desmanche de crianças

SILVIO SAIDEMBERG

Como psiquiatra, psicoterapeuta e como cidadão, tenho escutado, vez por outra, que alguma coisa terrível teria ocorrido com uma ou mais crianças; supostamente, elas teriam sido sequestradas e em algumas situações devolvidas a seus familiares com marcas de cirurgia recente. Extraíram-lhes um ou mais órgãos, provavelmente para que esse órgão ou órgãos -rins, olhos etc.- pudessem ser transplantados em pessoas mais endinheiradas do Primeiro Mundo ou até mesmo daqui. Entretanto, o "é de conhecimento geral!" fica como o melhor testemunho da fidedignidade do relato.
Na revista "Seleções Reader's Digest", em português, de outubro de 1996, consta um artigo de Rudolph Chelminski sobre o tema, onde se relata que histórias semelhantes tiveram origem em Honduras na década de 80, seguidas de narrativas na imprensa cubana e no "Pravda" de Moscou na mesma década.
Tudo isso poderia permanecer no folclore, como mais uma curiosidade a respeito das excentricidades humanas no trato com a realidade e com as fantasias, não fora o fato de que essa história acaba provocando fortes reações de rejeição e suspeita quanto ao desejo dos mais afortunados do Primeiro Mundo de adotarem crianças órfãs e abandonadas do Terceiro Mundo. Pressões políticas foram geradas, dificultando os trâmites legais de adoções no plano nacional e internacional.
A história do desmanche de crianças afeta principalmente a área médica, provedora dos prováveis agentes técnicos para tão complexas intervenções. Consequentemente, essas histórias têm um impacto desestimulante no desejo das pessoas de doar, em vida, seus órgãos ainda bons no caso de virem a perecer em acidentes. A confiança na classe médica é fundamental para que o grande público mantenha uma atitude de cooperação e ajuda ao próximo, em situações geridas pela medicina.
Para reflexão posterior, fica aqui um conselho a todos aqueles que ouvirem um conto fantástico sobre "mula-sem-cabeça", "extraterrestres", "saci-pererê", "canibalismo por inspiração política" ou "desmanche de crianças". Não se esqueçam de perguntar sobre as fontes da informação: "Quem?", "Quando?", "Onde?", "Como?" e "Quais os indícios e evidências de que tal realmente ocorreu?". Talvez essa prática faça muito pouco para limitar os danos causados por intrigas ou para mudar as convicções de quem nelas crê sem discernir, mas, pelo menos, servirá como um teste de ingenuidade e de senso ético.

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